Entrevista com Anivaldo Miranda: no caso da transposição, Lula age como político em campanha
2005-07-05
Secretário Executivo do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o
jornalista alagoano Anivaldo de Miranda Pinto, 61, é mestre em Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável e fundador, em 1986, da ONG ambientalista
Movimento Pela Vida – Movida -, a mais antiga de Alagoas. Como representante
da entidade, tornou-se membro do Conselho Deliberativo do Fundo Nacional do
Meio Ambiente – FNDA.
No Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o jornalista
personifica a insatisfação oficial e organizada quanto ao projeto de
transposição proposto pelo Governo Federal. Empossado na reunião plenária
realizada em meados de junho, em Minas Gerais, ele deu a entrevista abaixo para o
ambientebrasil.
Ambientebrasil - O Comitê do São Francisco elegeu há pouco mais de duas
semanas uma nova diretoria na cidade de Pirapora, em Minas Gerais. O que
muda em relação ao Governo Federal e ao Projeto da Transposição?
Anivaldo Miranda - A nova composição do Comitê reflete a continuidade da
composição anterior. Portanto, o Comitê continuará se posicionando
contrariamente ao Projeto da Transposição. Porém, haverá a disposição firme
de separar a polêmica gerada pela Transposição das atividades de execução do
Plano de Recursos Hídricos da Bacia. Portanto, apesar do clima pesado, o
Comitê, através de sua diretoria, tratará de construir com o Governo
Federal, através dos Ministérios do Meio Ambiente e da Integração Nacional,
uma agenda positiva.
O que ela prevê?
Anivaldo - Desta agenda positiva consta a cooperação com a União, Estados e
Municípios para o cadastramento completo dos usuários das águas da bacia,
construção do sistema de cobrança pelo uso da água bruta, montagem do Pacto
das Águas entre os estados da Bacia e cooperação na definição e
acompanhamento das ações relativas à revitalização do São Francisco. Como
ente público, o Comitê saberá separar confronto de cooperação e espera que o
Governo aja da mesma forma.
No dia 27 de junho, no programa Café com o Presidente, o
presidente Lula colocou à frente de sua lista de prioridades a integração
das bacias do Rio São Francisco. Segundo ele, a licitação para a obra sai
agora em julho. Como o senhor recebeu essa informação?
Anivaldo - Recebemos com imensa decepção porque verificamos que, neste caso
do Projeto da Transposição das Águas do Rio São Francisco, o presidente da
República age como um político em campanha e não como um estadista, como
todos nós gostaríamos que fizesse. Até agora, o presidente Lula não quis
receber a diretoria do Comitê do São Francisco, não se dispôs a ouvir os
governadores dos Estados da bacia hidrográfica, que se opõem ao Projeto da
Transposição, ou demonstrou qualquer sensibilidade para escutar os clamores
das populações ribeirinhas. Talvez seja por esta razão que continua a
repetir argumentos pueris em favor do projeto, o que denota visível
desconhecimento da complexidade de questão tão polêmica.
Em sua mais recente reunião plenária, o Comitê produziu uma
Carta ao Presidente, em que pedia a reabertura do diálogo sobre o tema
transposição. Houve alguma resposta a essa carta?
Anivaldo - A Carta ao Presidente deverá ser entregue nos próximos dias
porque, além das assinaturas dos membros do Comitê e dos governadores Aécio
Neves, de Minas Gerais, João Alves, de Sergipe, e Paulo Souto, da Bahia, a
carta circulou em vários Estados para receber a adesão de parlamentares e
representantes da sociedade civil. Esse documento foi idealizado porque
ainda existe a crença de que o presidente Lula não tem sido informado
corretamente sobre o real conteúdo das críticas que se fazem ao Projeto da
Transposição e tampouco sobre a disposição de diálogo dos patrocinadores
dessas críticas. Se for rompido o verdadeiro cordão sanitário que se
montou em torno do presidente, para afastá-lo da opinião pública da Bacia do
São Francisco, é possível que Lula modifique alguns dos seus posicionamentos
e analise com isenção o pedido de adiamento das obras da Transposição e
abertura do diálogo entre todas as partes interessadas.
O Comitê vem se posicionando desde o início contrariamente
ao projeto de transposição do São Francisco. Por quê?
Anivaldo – O Comitê, através da esmagadora maioria de suas dezenas de
representantes, entende que o Projeto da Transposição é insustentável do
ponto de vista sócio-ambiental, incerto e concentrador de água e renda do
ponto de vista econômico. O Projeto corresponde a uma visão antiquada do
desenvolvimento e propõe soluções lineares para problemas de ordem espacial.
É inviável sob o ângulo da relação custo/benefício e tem como real
beneficiário o agronegócio altamente subsidiado do Nordeste Setentrional,
sobretudo no que diz respeito ao chamado Canal Norte, que levará água para
reservatórios do Ceará e Rio Grande onde já há suficiente disponibilidade
hídrica para as necessidades locais em horizonte bastante razoável.
Que medidas estão sendo tomadas para impedir a continuidade
do projeto?
Anivaldo – O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco é um ente
público, componente do Sistema Nacional de Recursos Hídricos. Como tal,
exerceu prerrogativas legais que foram desrespeitadas pelas autoridades que
estão patrocinando o Projeto da Transposição. É neste contexto, portanto,
que o Comitê aprovou um Plano Decenal de Recursos Hídricos e estabeleceu
prioridades para o uso das águas da Bacia Hidrográfica do São Francisco. Ao
atropelar acintosamente as disposições desse Plano e ignorar as prioridades
estabelecidas, o Governo Federal ultrapassou os marcos da legalidade e
obrigou o Comitê à adoção das medidas necessárias à manutenção da
integridade da legislação nacional dos recursos hídricos, sobretudo naquilo
que diz respeito ao espírito democrático e participativo da citada
legislação.
Sendo assim, o Comitê, na qualidade de primeira instância para julgamento
administrativo dos conflitos relacionados ao uso das águas em sua
jurisdição, irá arbitrar o processo interposto pelo Fórum do São Francisco
(que é uma ampla articulação de entidades) contra o Projeto da Transposição.
Além disso, dentre outras iniciativas, pretende encaminhar representação ao
Ministério Público Federal visando coibir as interpretações abusivas da
Agência Nacional de Águas relativamente às competências do Comitê.
Como o senhor avalia a postura com que o ministro Ciro
Gomes vem conduzindo essa questão?
Anivaldo - O Ministro age com um misto de truculência e massiva manipulação
da opinião pública, sempre com a idéia fixa de esmagar os críticos da
Transposição e alcançar os seus objetivos políticos, fortemente ancorados no
Estado do Ceará, onde tem, como é sabido, a sua base principal de apoio. O
seu outrora incontestável brilhantismo na crítica ao modelo econômico
brasileiro dependente e concentrador de renda, choca-se agora com essa visão
paroquial do desenvolvimento, que ele concebe como se fora apenas um acúmulo
pontual de tecnologia, água e investimentos, sem qualquer relação abrangente
com os outros fatores da sustentabilidade no semi-árido brasileiro. No
fundo, o ministro rendeu-se à lógica que tanto contestou quando transitou
passageiramente na oposição, momento em que chegou até a alimentar
esperanças que agora se esvaem.
O governador João Alves Filho, de Sergipe, um tenaz crítico
da proposta, já disse que o projeto de transposição tem o demérito de estar
dividindo o país. O senhor concorda com essa avaliação?
Anivaldo -(enfático) Concordo inteiramente. E chego até a me surpreender com
o fato do Governo Lula, oriundo de um processo crítico tão rico, adotar um
Projeto de Transposição que foi copiado de governos anteriores e
continuamente rejeitado pelos Estados e populações da Bacia do São Francisco
devido à sua pobreza em termos de solução para o desenvolvimento. É
inacreditável que o Governo Lula não seja capaz de usar a sua criatividade
para romper a lógica conservadora das grandes obras milagrosas e apresentar
ao país um grande programa integrado de revitalização da Bacia do São
Francisco e desenvolvimento sustentável para o Semi-Árido brasileiro. É
realmente intrigante essa insistência em empurrar goela abaixo uma obra tão
polêmica, que joga brasileiros contra brasileiros na região mais
problemática do país.
O governador de Minas Gerais, Aécio Neves, também se
agregou mais recentemente à luta contra a transposição. Por quê?
Anivaldo – Todos conhecem a proverbial moderação do governador Aécio Neves.
Portanto, se agora ele se dispõe a adotar uma postura mais veemente contra o
Projeto da Transposição é porque tem razões de fundo para fazê-lo. Acho que
o governador de Minas Gerais compreendeu muito bem que o Projeto da
Transposição, apesar de captar água a jusante do seu Estado, ameaça de morte
o complexo Pacto das Águas que se pretende construir dentro da bacia para
evitar conflitos federativos em futuro não distante. O Governo Federal omite
da opinião pública que grande parte das águas do Rio São Francisco são
oriundas de bacias hidrográficas estaduais de Minas Gerais, portanto sob
tutela estadual. Para que não se instale a desordem hídrica na bacia, faz-se
necessária a construção desse pacto, algo que é extremamente delicado.
O papel do Comitê do São Francisco é exatamente a construção desse consenso
e é lamentável o Governo Federal, a quem caberia arbitrar com equilíbrio
esse processo, seja o primeiro a pisotear a legislação, atropelar o Comitê,
desrespeitar o Plano de Recursos Hídricos da Bacia, ignorar os Estados dela
componentes e tudo isso para viabilizar uma mega obra de engenharia
desconectada inteiramente das reais necessidades do país.
O que o Comitê defende exatamente?
Anivaldo – O Comitê defende a Lei. Defende a Constituição brasileira.
Defende a democracia participativa. Defende o Sistema Nacional de Recursos
Hídricos e defende o desenvolvimento sustentável. Ao impor a aprovação de
uma precária Nota Técnica elaborada pela Agência Nacional de Águas como
instrumento para forçar o Conselho Nacional de Recursos Hídricos a
atropelar, a toque de caixa, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São
Francisco, o Governo Federal subverteu, sob pressão dos ministérios do Meio
Ambiente e da Integração Nacional, toda a delicada e solidária construção do
Sistema Nacional de Recursos Hídricos. De fato rasgou a Lei e a Constituição
baseado em interpretações jurídicas capciosas para viabilizar a
legalização da obra da Transposição.
Depois veio o capítulo constrangedor do licenciamento ambiental, baseado em
estudos unilaterais e audiências públicas vexaminosas. Em resumo, o que se
viu foi uma ofensiva autoritária, completamente destoante da democracia que
queremos aprofundar no Brasil e que tem nos Comitês de Bacia Hidrográfica um
maravilhoso embrião para a futura gestão compartilhada das águas. É o tal
negócio: arrotar democracia, qualquer um arrota. Mas praticá-la é difícil.
Exige aprendizado, modéstia e consciência cívica avançada.
Que previsão o senhor faz do desenrolar dessa polêmica?
Anivaldo - Essa polêmica já dura há mais de um século e deverá continuar
porque o Projeto da Transposição pertence a uma lógica que concentra mais
ainda a renda e aprofunda inclusive o desequilíbrio dentro do contexto
regional nordestino. É um projeto que mexe com o panorama geopolítico de uma
forma estupidamente restritiva. Condena Estados como Alagoas e Sergipe, por
exemplo, a uma marginalização ainda maior com o aprofundamento da crise
sócio ambiental que já se abateu sobre a vertente do Baixo São Francisco
como resultado dos impactos oriundos das barragens hidrelétricas, impactos
que nunca foram minimamente compensados.
Trata-se de um projeto que abandona totalmente as potencialidades da própria
Bacia para viabilizar, a custos estratosféricos, a criação de camarões e
exportação de frutas a uma distância absurda da calha do rio São Francisco,
onde temos pelo menos 3 milhões de hectares de terras aptas para irrigação a
custo mínimo.
O presidente Lula usa, como marketing básico, o argumento
de que o projeto vai matar a sede de 12 milhões de pessoas que vivem no
semi-árido nordestino, principalmente no Ceará, Rio Grande do Norte,
Pernambuco e Paraíba. Assim, não cabe o argumento – já usado pelo time a
favor – de que seria egoísmo tentar barrar o projeto?
Anivaldo – O presidente, acredito eu, está sendo envolvido em perigosa
manipulação das informações, como já tive ocasião de sugerir. E é ruim para
a imagem dele, que todos queremos preservar para o bem da democracia. No dia
em que o presidente souber que os Estados do Ceará, Rio Grande do Norte,
Paraíba e Pernambuco têm juntos uma capacidade de reservação de águas que
corresponde quase que praticamente à capacidade do lago de Sobradinho, um
dos maiores lagos artificiais do mundo, então parará imediatamente de falar
coisas que são inteiramente dissociadas dos fatos reais. O Nordeste
setentrional dispõe hoje de uma rede de açudes e reservatórios que são
capazes de abastecer muitas vezes e durante muitos anos a população do
semi-árido setentrional. Se isto não ocorre é porque faltam simplesmente
recursos para a gestão daquelas águas e sua distribuição eqüitativa. Para se
ter uma idéia da ausência dessa gestão, basta lembrar que centenas de
açudes, com capacidade média de armazenamento de 200 milhões de metros
cúbicos de água, danificados pelas enchentes de 2004, permanecem até hoje
abandonados porque o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS)
praticamente nada recebeu para recuperá-los, conforme denúncias veiculadas
no jornal paulista Folha de São Paulo.
Qual seria a contra-proposta do Comitê para minimizar os
impactos da seca e dessa “sede” a que se refere o presidente da República?
Anivaldo – A proposta do Comitê, feita desde a sua II Plenária realizada em
2003 na cidade alagoana de Penedo, é a substituição do Projeto da
Transposição por dois grandes programas integrados de revitalização do Rio
São Francisco e um outro de desenvolvimento integrado e sustentável do
Semi-Árido brasileiro. Neste sentido, o Comitê defende que os investimento
previstos para a Transposição sejam imediatamente aplicados para recuperar
os açudes do Nordeste Setentrional, criar redes de distribuição das águas lá
acumuladas, viabilizar a proposta da construção de l milhão de cisternas no
polígono das secas, combinado com a construção de barragens subterrâneas,
poços com dessalinizadores e até a construção de adutoras para a
transposição de águas do Velho Chico para áreas do semi-árido onde haja
situações de escassez comprovada e incontornável de água, com o objetivo de
uso exclusivo para abastecimento humano e dessedentação animal.
A contrapartida desses investimentos no semi-árido seria a divisão dos
recursos previstos para a Transposição para aplicação, em termos
eqüitativos, na recuperação hidroambiental e no desenvolvimento da Bacia São
Francisco. Finalmente a proposta do Comitê é que esses recursos componham
também um programa de inclusão social das populações dispersas do semi-árido
através de projetos de geração de renda, produção de energia alternativa
(leia-se energia solar, eólica etc.), promoção de saúde, educação e
cidadania. Trata-se, portanto, de substituir a visão caolha do crescimento
por uma visão moderna e integrada do desenvolvimento. (Mônica Pinto / AmbienteBrasil, 03/07/2005)