Justiça decide que IBAMA não pode autorizar caça no RS
2005-07-04
O Juiz Federal Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, da Vara Ambiental, Agrária e Residual, reconheceu nesta terça-feira (28/6) que a caça amadorista, a caça recreativa e a caça esportiva não podem ser liberadas nem licenciadas porque não têm finalidade socialmente relevante, não condizem com a dignidade humana, não contribuem para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e porque submetem os animais silvestres a crueldade. A decisão atinge ao território do Estado do Rio Grande do Sul.
E determinou ao IBAMA que adote providências para que a vedação da caça amadorista seja cumprida através de fiscalização e o exercício de seu poder de polícia ambiental.
Determinou também, o magistrado, que o IBAMA somente autorize a caça científica ou a caça de controle na forma da legislação, sendo que a de controle somente poderá ser liberada se existirem estudos prévios, conclusivos e inequívocos a respeito de sua necessidade, com demonstração explícita da observância dos princípios incluídos no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988 e da adequação ao princípio da precaução.
O dispositivo constitucional citado pelo juiz afirma que a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...).
O Juiz Federal Cândido também fixou multa no valor de R$ 11.009,17 em caso de descumprimento da decisão, por dia de descumprimento ou por licença ou autorização concedidas em seu desacordo. União pela Vida – Em manifestação à EcoAgência de Notícias, a Coordenadora-geral da UPV, Maria Elisa Silva, afirmou na noite deste domingo (4/7) que a sentença é um momento muito importante na luta que a União pla Vida iniciou em 2004, com um abaixo-assinado que reuniu mais de 12 mil assinaturas, contra essa prática qual negamos o status de esporte.
Por sua vez, a Advogada autora técnica da Ação Civil Pública, Patrícia Azevedo da Silveira, ressalta que o fato dessa ação ter sido julgada procedente, não é uma vitória apenas da União pela Vida, mas de todas as pessoas que verdadeiramente se preocupam com a proteção do meio ambiente e também das gerações futuras, pois toda e qualquer atividade humana deve obedecer ao princípio da precaução, da dignidade humana e da informação ambiental, princípios consagrados na Constituição Brasileira de 1988.
A ação
A União Pela Vida pediu na ação que fosse liminarmente determinada a moratória da caça amadorista, de campo e de banhado, na temporada de 2004, em face dos efeitos danosos da estiagem possivelmente causados às espécies cinegéticas. E também, quando do julgamento do mérito da ação, o que aconteceu agora, a sua procedência final para a proibição definitiva da caça amadora no RS. A liminar foi negada pelo Juízo da 9ª Vara Federal (depois 8ª Vara Federal) para onde a ação foi inicialmente distribuída. O IBAMA, na fase de instrução, defendeu o seu ato liberatório afirmando que a legislação havia sido cumprida ao produzirem-se estudos prévios de controle das espécies a ter a permissão de caça concedida. E que a ação deveria ser considerada prejudicada pois a temporada de 2004 já havia acabado. Em 15/3/2005, o processo foi concluso para sentença, sendo mais tarde redistribuído à Vara Ambiental, recém instalada em Porto Alegre no âmbito federal. O Ministério Público Federal entendeu que a ação não tinha base jurídica, opinando pela sua improcedência.
Os argumentos
Alguns argumentos da UPV não foram aceitos pelo magistrado. A alegação de que a ficha individual de controle de caça não exigia a informação do distrito e da propriedade rural onde os animais foram abatidos, o que seria necessário para que fossem conhecidos os efeitos da pressão da caça sobre as populações cinegéticas, não foi aceito pelo juiz. Para o Dr. Cândido, o novo modelo adotado pelo IBAMA em 2005 é mais completo e atende a justa impugnação da ficha pela UPV.
A coleta de milhares de assinaturas contra a permissão de caça é um argumento político e não jurídico, disse o juiz. Ou seja, continuou, serve para justificar perante uma casa legislativa a aprovação de lei que proibisse a caça, mostrando que isso é anseio da maioria da população, mas não serve para convencer este Juízo da procedência da ação civil pública, porque existe uma lei vigente e essa lei somente poderá ser afastada se ficar demonstrada sua inconstitucionalidade.
A respeito da contaminação do solo pelo chumbo da munição das armas de caça, nada foi produzido durante a instrução probatória que demonstrasse essa possibilidade, sequer havendo indícios concretos de que isso estaria ocorrendo ou poderia ocorrer, entendeu o magistrado. E, diz, - por mais que esse Juízo, como qualquer cidadão, se mostre preocupado com a defesa do meio ambiente e efetividade do art. 225 da CF/88, não pode julgar sem provas. O juiz rejeitou a fundamento apresentado pela UPV e afirmou que não há prejuízo a matéria ser tratada com detalhamento em outra ação judicial, tratando especifica e propriamente da questão e produzindo prova adequada e suficiente.
Maus tratos – Por outro lado, o Juiz Federal Cândido Leal Jr. considerou não ter dúvidas de que os argumentos da União Pela Vida são procedentes no sentido de que a caça amadorista constitui ato de crueldade e maus tratos com os animais silvestres, havendo desproporção entre seu objetivo (lazer humano) e seu resultado (morte dos animais), afrontando o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
A respeito da caça de controle, a caça de subsistência e a caça científica, lembrou o magistrado que têm tratamento legal apropriado e que não são discutidas ou atacadas pela União pela Vida na ação. - Aqui se discute apenas a dita caça amadorista, seja na modalidade de caça recreativa (com finalidade de lazer e recreação), seja de caça desportiva (com finalidade de competição). (...) É contra essa espécie de caça sem-sentido-socialmente-relevante que a associação-autora se volta.
Para o juiz, ...se a caça amadorista não tem outra finalidade que não o prazer ou a recreação de quem caça, não tem esse Juízo deixar de reconhecer que se trata de prática constitucionalmente vedada porque submete os animais a tratamento cruel. E prosseguiu: A caça amadorista é prática que submete os animais à crueldade porque existe abismal desproporção entre seu objetivo (lazer humano) e seu resultado (morte dos animais). Ser cruel significa ´submeter o animal a um mal além do absolutamente necessário, considerou, citando a jurista Érika Bechara. E prosseguiu: - Caçar sem uma finalidade socialmente relevante é submeter o animal a um mal além do absolutamente necessário. O mal (morte do animal) não era necessário para algo que fosse socialmente relevante. Destinava-se apenas a suprir um instinto primitivo do caçador em ver o animal, mais do que subjugado, abatido. Isso é crueldade, porque é cruel o feito em detrimento da vida para o mero deleite de alguém.
Finalidade irrelevante – Em longa argumentação, o magistrado considerou que a caça que não tem uma finalidade socialmente relevante (amadorista ou esportiva), é uma prática cruel porque priva o animal de sua liberdade, sacrifica a vida do animal sem um motivo justificado ou razoável. - Não se diga que lazer e esporte seriam motivos justificados para dar um sentido socialmente relevante àquelas modalidades de caça, porque não o são - afirma. Lembrou que a Constituição Federal prevê lazer como direito social, mas isso não permite que qualquer tipo de lazer seja tolerado.
Propriedade - Comparou a situação da propriedade privada, que a constituição Federal reconhece, mas logo após submete a sua função social. Com o lazer, ocorre o mesmo porque existem muitas outras formas de passar o tempo, de divertir-se, de viver fortes emoções, sem que seja necessário perseguir e matar animais indefesos, que lutam para sobreviver nos campos e banhados do Estado do Rio Grande do Sul, cada vez mais reduzidos e afetados pela ação humana”. - Se com aquilo que nos pertence (a propriedade), estamos sujeitos à função social e ambiental, com mais razão isso também deve estar presente em relação àquilo que pertence à coletividade, como é o caso da fauna silvestre - considerou o juiz.
STF - A respeito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o magistrado considerou que pelo que pode pesquisar, a questão da caça amadorista ainda não chegou ao STF, talvez porque seja permitida apenas num único Estado da Federação – o Estado do Rio Grande do Sul -, mas os precedentes em relação à briga de galos e ao da farra do boi dão a entender que aquele Tribunal entende que as práticas cruéis não são constitucionalmente aceitáveis. Biodiversidade – Para o Dr. Cândido, a caça amadorista se utiliza do meio ambiente e dos recursos naturais para mero deleite, esquecendo-se nosso dever para com as gerações futuras”. “Somente se houvesse muita abundância é que se poderia permitir o deleite privado dos caçadores. Isso foi feito muito antigamente, quando os homens ainda descobriam as fronteiras desse imenso País se deslumbravam com os animais que lhes pareciam exóticos e acreditavam, ingenuamente, que a riqueza natural do País não tivesse fim e lhes pertencesse como senhores da descoberta das novas terras, considerou. -...As espécies estão acabando, tudo deve ser poupado. A biodiversidade corre sérios riscos. Tudo deve ser preservado. Toda a ação humana deve levar em conta não apenas o benefício imediato ao seu próprio agente, mas também pensar nos reflexos para o restante dos homens e ecossistemas, presentes e futuros - relatou.
Validade dos estudos realizados – a União pela Vida também questionou os estudos realizados para a temporada de caça, afirmando que foram falhos. – Entretanto - afirma o juiz - a instrução probatória não demonstrou quais teriam sido esses problemas e falhas dos estudos realizados para permitir a caça no Estado do Rio Grande do Sul, não sendo por isso acolhidos os argumentos da associação-autora. Observou o magistrado que também não haveria sentido em determinar condutas futuras para o réu IBAMA no tocante a estudos prévios para a liberação da caça amadorista, porque essa prática foi reconhecida como vedada por essa sentença, não sendo mais possível ao réu IBAMA que libere a prática, mesmo que tenha realizado estudos a respeito.
Conclusão
Na conclusão da sentença de 20 páginas, o juiz afirma que não mais persiste a base antropocêntrica que justificou o art. 1º, §1º da Lei nº 5.197/67, devendo agora se reconhecer a autonomia do patrimônio natural e a necessidade de atribuição de dignidade intrínsica à natureza, impedindo comportamentos humanos que não sejam prudentes ou sejam desproporcionais. Mais, isso se reflete sobre o licenciamento da caça, que somente poderá ser permitida pelo órgão administrativo competente quando for necessário para algo socialmente relevante (caça científica e caça de controle), devendo ser impedida quando sua finalidade é apenas o mero deleite de alguns poucos privilegiados (caça amadorista, caça recreativa e caça esportiva). Sendo essas últimas prática cruel, que não tem finalidade socialmente relevante, sua liberação ofende aos arts. 1º,III e 225-§ 1º-VII da CF/88, sendo por isso inconstitucional. (Eco Agência, 04/07)