Desmatamento na Amazônia: O cofre da conservação
2005-06-15
As florestas tropicais brasileiras continuam todos os dias nos jornais, sempre pelos maus motivos. Das editorias de Ciência, quando anunciada a aceleração do desmatamento (prevista por meio mundo, inclusive esta coluna), passaram a ocupar as páginas de Política, por causa da repercussão nacional e internacional do problema, e agora chafurdam na lama das crônicas policiais. Será que, diante de quadro tão negativo, há algo positivo a se dizer?
Acreditamos que sim. Há luzes na floresta que não são de mais fogo na mata. Não se trata de minimizar o problema, adoçando os números com cálculos de cabeça para baixo. Os dados mostram claramente que houve aceleração do desmatamento. A alegada vitória de que o desmatamento poderia ter sido ainda pior por causa da expansão do PIB brasileiro no período não se sustenta quando se olha a série recente dos dados: não há correlação entre o aumento do PIB nacional e o desmatamento na Amazônia. Como mostra o gráfico, a taxa de crescimento do PIB oscila consideravelmente, mas o desmatamento apresenta uma tendência ascendente crescente. Se houvesse a relação apregoada pelo Governo Federal, o desmatamento deveria ter diminuído durante a recessão de 2001-2003.
Os remanescentes florestais são um estoque em declínio, logo, a cada ano há menos floresta. Assim, mesmo se o volume absoluto do desmatamento se mantiver constante, a taxa de desmatamento (o cálculo é a área desmatada em um ano dividida pela área de floresta remanescente) irá aumentar. Portanto, qualquer resultado diferente de uma redução da área desmatada absoluta não pode ser saudado como vitória.
Há, porém, um resultado positivo em meio ao drama geral. O desmatamento diminuiu principalmente nos estados de Tocantins e Amazonas. Por que isso está acontecendo? Em um texto para o site do Fundo Nacional para a Biodiversidade – FUNBIO, Virgílio Viana, Secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, explicou as políticas adotadas em seu Estado. Ao invés de perceber o problema como uma questão legal, antes de tudo, ele reconheceu que há uma racionalidade econômica por trás dessa decisão. Desmata-se para obter ganhos financeiros com a retirada de madeira ou a legalização da terra em processos de grilagem. Desmata-se com a idéia de que só é possível aumentar a renda com a substituição das florestas por pastagens e agricultura. Essa lógica econômica se aplica a todos: desde os ribeirinhos do Alto Solimões até os colonos e fazendeiros do Sul do Amazonas. O problema é que só recentemente começam a ser formuladas políticas públicas com o objetivo de mudar essa racionalidade do desmatamento.
Seguindo essa lógica, foram implementadas políticas no Amazonas que aumentam a renda das atividades econômicas compatíveis com a sobrevivência da floresta, valorizando financeiramente o uso sustentável da floresta. Isso incluiu o licenciamento de planos de manejo florestal de pequena escala e incentivos à extração de produtos não-madeireiros como borracha, óleo de andiroba, copaíba e outras essências, mel, açaí, enfim, uma enorme diversidade de produtos que a floresta proporciona. Aumentando a renda média dos produtos florestais, fica bem mais fácil conter o processo de conversão para atividades alternativas. Por outro lado, foi feito um esforço de regularização fundiária, para impedir o desmatamento como “produtor” de direitos de propriedade. Junto com outras políticas que encaram que preservação florestal não se faz apenas com coerção, a área desmatada caiu de 1.734 km2 para 1.054 km2.
É claro que há uma série de circunstâncias mais favoráveis ao controle do desmatamento no Amazonas do que em outras partes da Amazônia, como o maior isolamento relativo e maior distância da fronteira agrícola. Mas, de qualquer forma, é um bom sinal: instrumentos financeiros que valorizem as florestas em pé podem contribuir significativamente para a redução do desmatamento. Este é, por sinal, o tema de um artigo do co-autor desta coluna, que será publicado este mês na revista científica Conservation Biology, em número especial com vários artigos discutindo a conservação da biodiversidade no Brasil.
O artigo Financial Mechanisms for Conservation in Brazil destaca a redução dos orçamentos convencionais e dos recursos externos para a proteção ambiental, percebida desde o fim dos anos 90. Por isso, instrumentos econômicos que incentivam a preservação de habitats e, ao mesmo tempo, geram recursos, são vitais para a gestão ambiental contemporânea. O instrumento mais conhecido é o ICMS ecológico, iniciativa de caráter estadual que vincula a receita recebida pelo município no bolo do ICMS ao cumprimento de metas ambientais. A área com unidades de conservação que um município tem é um dos fatores usados para determinar quanto o município tem a receber. Em alguns Estados, variáveis relacionadas ao saneamento ou coleta de lixo também são consideradas. Iniciado em 1992 no Paraná, o ICMS Ecológico está presente na metade dos Estados brasileiros e, segundo uma recente Pesquisa de Gestão Municipal feita pelo IBGE, é o instrumento de repasse de recursos para municípios por razões ambientais mais difundido: 389 municípios (de um total de 5560) receberam recursos do ICMS Ecológico em 2002. O imposto verde tem, porém, dois problemas sérios. Não há possibilidade de vincular o uso da receita para fins especificamente ambientais, o que significa que o prefeito é livre para usar o recurso da forma que bem entender, e o montante total do recurso a ser rateado entre os municípios é fixo, ou seja, para um município aumentar sua participação, o outro terá necessariamente que perder.
Uma fonte de recursos ainda subutilizada são as parcelas dos royalties oriundos da extração de petróleo e de utilidades públicas como eletricidade e água que deveria estar sendo aplicada para a proteção ambiental. Diversos projetos foram possíveis por causa desses recursos, mas ainda persiste grande dificuldade de se garantir a adequada aplicação. Há muita resistência por parte dos gestores públicos em aplicar os fundos para atividades relacionadas efetivamente à proteção ambiental, e em muitas situações, os recursos acabam parados, sem uso específico. Também não existe coordenação entre os gestores desses fundos e os demais programas de conservação, o que gera ineficiência na sua aplicação.
Na questão hídrica, a nova Política Nacional de Recursos Hídricos prevê a cobrança pelo uso da água. Isso pode ser uma solução significativa para a despoluição hídrica, coleta e tratamento de lixo e recuperação e proteção de vegetações nativas em torno de corpos hídricos. Porém, o grande atraso na implementação da cobrança – ainda bastante restrita, sendo o Vale do Paraíba do Sul o mais divulgado – e a confusão institucional para saber quais as agências irão cobrar e administrar as receitas pela água tem atrasado consideravelmente a efetivação deste instrumento. Se sem dinheiro envolvido, o conflito de competência na área ambiental já é grande, imagine agora, com essa nova forma de gerar recursos.
No setor florestal, existe uma taxa de reposição de florestal cobrada sobre extração de madeira nativa. Mas o valor é baixo e há sonegação na cobrança, enfraquecendo esse instrumento que, em outras circunstâncias, poderia ser mais uma fonte importante de financiamento da conservação.
Uma grande conquista na área tributária foi a mudança na cobrança do Imposto Territorial Rural (ITR) em áreas de floresta. Antes, essas áreas em propriedades privadas eram consideradas improdutivas e por isso eram sobre-taxadas. Atualmente, não somente houve reversão desse viés antifloresta como já existe a possibilidade isenção do pagamento desse imposto se a propriedade tiver uma Reserva Privada do Patrimônio Natural (RPPN). As RPPNs têm sido saudadas como um grande avanço para a contribuição privada para a preservação e, em alguns casos, ajudam significativamente para a preservação de alguns habitats ameaçados. São importantes, por exemplo, para a preservação do mico-leão dourado no entorno das Reservas Biológicas de Poço das Antas e União/ RJ, e a reinserção de novas famílias do mico na natureza hoje, se dá primordialmente em áreas privadas. Porém, ainda faltam incentivos econômicos para que as RPPNs sejam difundidas em larga escala: na maioria das vezes, não há outro retorno além da isenção do ITR para sua implementação.
Uma ferramenta que pode auxiliar na geração de valor da floresta em pé é o sistema de servidão florestal, que flexibiliza o atendimento da área mínima de reserva legal em uma propriedade através da averbação de reservas legais em áreas de terceiros. De maneira mais simples: em vez de cumprir o mínimo de reserva legal na sua própria propriedade, um agricultor pode usar reservas excedentes de outras propriedades, onde os remanescentes florestais superarem o mínimo legal, compensando financeiramente. Assim, é criado um incentivo financeiro aos proprietários de áreas com excedentes florestais, que passariam a receber compensações dos proprietários com déficits florestais. Falta ainda muito na regularização desse instrumento, mas é uma excelente iniciativa que poderá flexibilizar o atendimento do Código Florestal com maior eficiência econômica – nas áreas mais propícias à agricultura, o uso da terra será mais intensivo, enquanto que as áreas de reserva legal passariam a ficar mais concentradas, diminuindo o problema da fragmentação dos remanescentes. Só que não pode aceitar gato por lebre: não se deve aceitar a troca de uma reserva legal que deveria ocorrer em um habitat bastante ameaçado por florestas distintas, com outras características.
Uma questão que provocou decepção para os conservacionistas é a desconsideração dos esforços para reduzir o desmatamento na lista dos projetos considerados aptos a gerar créditos de carbono, nas negociações para regulamentar o funcionamento do Protocolo de Kyoto. Infelizmente a própria equipe do governo brasileiro não acredita na idéia, considerando que conservar florestas não é uma ação, mas uma inação, e por isso não deveria merecer o mesmo tratamento que outras atividades, embora o desmatamento seja, de longe, a maior contribuição brasileira para o efeito estufa. De forma pejorativa, a conservação já foi definida como botar cerquinhas na floresta nos meios que definem a política brasileira na área de mudança climática, inclusive em eventos dentro do próprio Ibama.
Enquanto não existirem mudanças nessa área, quem vai se beneficiar pelos créditos de carbono são os plantadores de eucalipto, pinus e outras espécies exóticas, apesar de ser muito mais barato combater o efeito estufa no Brasil através da redução do desmatamento, do que em projetos de reflorestamento de exóticas ou energias renováveis, onde o Brasil já é limpo. Se fossem permitidos créditos por esforços de redução de queimadas, seguramente o preço médio de evitar a emissão de carbono cairia bastante, afinal, essa é a idéia, atingir a meta ambiental com o menor custo econômico possível, tornando menos atraentes os projetos relativamente mais caros e sofisticados no setor energético. Isso deslocaria recursos da área de energias renováveis, que não são necessariamente limpas, para a conservação florestal.
Há, contudo, um enorme desequilíbrio na composição da equipe brasileira que lida com mudanças climáticas (a grande maioria relacionada ao setor energético, e pouquíssimas pessoas ligadas às florestas), e na prática as florestas não tiveram vez na questão do carbono: articula-se a ressurreição de um programa de combustíveis fósseis a partir de um cultivo, o biodiesel, mas o governo jura de pé junto que não vai repetir o Proálcool e que a produção será procedente da agricultura familiar no semi-árido nordestino. Difícil de acreditar, sabendo-se que a grande vantagem comparativa na produção de óleo vegetal em larga escala está no cerrado, nas mesmas plantações de soja que agora são acusadas de fomentar o desmatamento.
Existem mais opções de instrumentos econômicos e ações de conservação voluntária, como grandes empresas que patrocinam programas de conservação e reflorestamento, ou políticas de compras, públicas ou privadas, que privilegiem a aquisição de produtos com certificação ambiental, mas essas contribuições ainda são pequenas no quadro geral.
O que pode realmente mudar de maneira significativa a movimentação de recursos para a conservação da biodiversidade no Brasil são as compensações ambientais, previstas no artigo 36 do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Segundo a lei, empreendimentos de significativo impacto ambiental são obrigados a pagar uma determinada quantia para ser usada exclusivamente em unidades de conservação de proteção integral – excepcionalmente, unidades de conservação de desenvolvimento sustentável podem ser beneficiadas, desde que diretamente afetadas pelo projeto. Mas trata-se de assunto polêmico e ainda nebuloso, que deixaremos para uma próxima coluna exclusivamente dedicada ao tema. (O Eco, 13/06)