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2005-06-14
Por Carlos Matsubara

Marli Medeiros coordena a mais avançada experiência em triagem de resíduos do Brasil. É também a poderosa líder comunitária da Vila Pinto, uma das mais carentes e violentas de Porto Alegre. Ela desembarcou por lá em 1976, vinda do Alegrete, com filhos e marido a tiracolo para ocupar um terreno da prefeitura na época, abandonado e tapado de lixo.

A invasão foi legalizada tempos depois quando Marli articulou junto ao então prefeito Tarso Genro a instalação de um galpão de separação de lixo. Passados os anos o galpão da Vila Pinto é reconhecido pelo mundo afora. Ganhou prêmios na Expo 2000 em Hannover, na Alemanha pelo projeto inovador, prêmio do Governo Alemão e reportagens em revistas de circulação nacional, como Veja, Vogue, Cláudia, entre outras.

Até chegar lá, Marli comeu o pão que o diabo amassou. Sofreu nas garras do tráfico e na ignorância dos homens da vila, que a enxergavam como uma agitadora e que levava às suas companheiras pro mau caminho.

As mulheres eram utilizadas como mão-de-obra pelos traficantes e isso para Marli tinha que ser mudada. Foi então que conheceu o filme Ilha das Flores, de Jorge Furtado e o irmão marista Antonio Cecchin, que havia tido uma experiência frustrada no início dos anos 1980 ao tentar organizar os papeleiros da Ilha dos Marinheiros em uma cooperativa de reciclagem.

Achou ali uma alternativa para livrar as mulheres da dependência de seus companheiros e de gerar uma renda para a comunidade. Reuniu algumas dezenas delas que, a esta altura, já estavam empolgadas com a possibilidade de adquirir muito mais que um trabalho. — As pessoas podem viver do lixo, sem ter a necessidade de comê-lo. A frase é uma das preferidas dela, frasista de prontidão.

Organizou diversas reuniões com aquelas coitadas, no que chamou de Clube das Mulheres, em referência a uma novela global da época. Reunidas, falavam de seus problemas, queriam saber por que se deixavam violentar, o que acontecia com elas. Numa dessas noites, um dos maridos, completamente drogado, invadiu a casa e arrancou sua esposa pelos cabelos. Organizadas, conseguiram algumas melhorias para a vila, como luz, asfalto, telefones públicos, o que acabou por empurrar o tráfico pesado para vilas próximas.

No início do galpão, homens não eram admitidos, e talvez nem eles quisessem, mas o fato é que, com o passar do tempo, Marli admitiu a importância deles, nem que fosse apenas para os serviços pesados. — As bombonas (cheias de lixo) eram muito pesadas-. Mas a vida dos homens não foi fácil, além de minoria, as regras e a coordenação ficavam a cargo das mulheres. — Aqui eles têm duas funções: carregar caminhão e obedecer as mulheres-, diz em tom de brincadeira, mas falando sério.

Meses antes da inauguração do galpão, a secretária do Clube das Mulheres foi morta em uma briga de quadrilhas rivais. Uma morte acidental, mas que intimidou os traficantes, que passaram a ser alvo da ira de policiais que a esta altura já eram amigos de Marli. — Bah, a gente não tinha medo deles, mas depois de toda essa movimentação os caras começaram a me marcar-, lembra num porto-alegrense carregado no sotaque.

Não conseguindo atingir a mãe, a bandidagem partiu escolheu outro alvo: Ana Paula, a filha de 25 anos. Atingiram seu olho esquerdo com uma funda, espécie de estilingue. Aquilo causou uma explosão ocular irreversível, deixando a moça completamente cega dele. — Fosse na nuca, entraria no cérebro e me matava-, recorda Ana, hoje braço-direito e esquerdo da mãe.

Ainda no hospital, Marli começou a chorar desesperada pelo sentimento de culpa e decidiu abandonar tudo. — Ana, eu nunca mais vou botar meus pés lá dentro, não quero mais saber-, afirmou. Foi quando a filha, num gesto teatral, pegou em sua mão e decretou: —Mas mãe, a vida inteira a senhora me ensinou o que é o bem e o que é o mal, como agora vai me dizer que o mal é maior que o bem?-. Mãe e filha voltaram e organizaram a segunda etapa do projeto que era transformar o humilde galpão de triagem de resíduos sólidos em um completo Centro de Educação Ambiental.

Na parte de educação ambiental, muita cultura. As crianças da vila, a maioria filhos de recicladores da Unidade de Triagem, recebem aulas de teatro, judô, mosaico e música. O Centro ainda conta com um telecentro equipado com nove computadores conectados a internet. No quesito lixo, a Vila Pinto dá um banho, recebe diariamente uma tonelada aproximadamente. Graças a coleta seletiva, quase 80% é reaproveitado. O lado ruim é que ainda estão nas mãos dos atravessadores. Faltam empresas dispostas a comprar o material separado. Ana Paula conta que apenas o resíduo ferroso é vendido diretamente para um empresa siderúrgica.

Para o irmão Cecchin, Marli Medeiros é uma musa. — Eu costumo dizer que depois que a Marli surgiu, mulher, negra e pobre, do meio do lixo, cessa tudo o que antiga musa canta-. Ele ressalva que ela conseguiu colocar em prática tudo aquilo e muito mais que ele e sua irmã tentaram tempos atrás, um modelo de vida para as comunidades carentes. — Tudo aquilo que para nós foi uma utopia, ela tornou realidade-, derrama-se em elogios.

Cecchin foi professor do Colégio Rosário e da PUC, preso durante a Redentora em 68, indo posteriormente trabalhar em periferias de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, criando unidades eclesiásticas de base. Em 1979, organizou a primeira ocupação urbana também em Canoas. Saiu de lá em 1986, quando iniciou os trabalhos com a população miserável da Ilha Grande dos Marinheiros. Mas essa já é uma outra história....

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