Julgamento inédito responsabiliza empresa por dano ambiental
2005-06-09
Em julgamento inédito, no último dia 3/06, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) responsabiliza penalmente empresa por dano ambiental. Os ministros seguiram o entendimento do relator, ministro Gilson Dipp, para quem a decisão atende um antigo reclamo de toda a sociedade contra privilégios inaceitáveis de empresas que degradam o meio ambiente.
Com a decisão, foi aceita a denúncia do Ministério Público de Santa Catarina contra o Auto Posto 1270 por ter causado poluição em leito de um rio, devido a lançamento de resíduos, tais como, graxas, óleo, lodo, areia e produtos químicos resultantes da atividade do estabelecimento.
Segundo o MP, a ação dos acusados contrariava a Lei nº 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. A lei, em seu artigo 54, diz ser crime ambiental causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. Determinando pena de reclusão de um a cinco anos se o crime ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos.
A lei também considera crime ambiental e poluição construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes. Nesse caso, a pena é de detenção de um a seis meses, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
De acordo com o MP catarinense, teria ocorrido concurso formal (quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não). A Justiça catarinense havia aceitado a denúncia apenas contra Mário Elói Hackbarth e Salete Maria Gevasso Borges Consta, mas a rejeitou em relação ao estabelecimento. O juiz de primeiro grau rejeitou a denúncia entendendo que a pessoa jurídica não poderia figurar no pólo passivo da ação penal. Os desembargadores do Tribunal de Justiça, por sua vez, concluíram que o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica não poderia ser introduzido no sistema brasileiro, o que não significaria dizer que devam ficar sem punição, mas essa deveria ser de natureza administrativa e civil, não penal.
A decisão levou o MP estadual a recorrer ao STJ. Ao apreciar a questão, o relator, ministro Gilson Dipp, destacou que o tema tratado é bastante controverso na doutrina e jurisprudência. — A Constituição Federal de 1988, consolidando uma tendência mundial de atribuir maior atenção aos interesses difusos, conferiu especial relevo à questão ambiental, ao elevar o meio ambiente à categoria de bem jurídico tutelado autonomamente, destinando um capítulo inteiro à sua proteção. O artigo 225 da Constituição afirma que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Prevendo em seu parágrafo 3º a criminalização das condutas lesivas causadas ao meio ambiente, fossem os infratores pessoas físicas ou jurídicas.
Somente dez anos depois, continua o relator, foi promulgada a Lei nº 9.605/98, regulamentando o dispositivo constitucional, a qual em seu artigo 3º afirma que as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
— A referência às pessoas jurídicas, no entanto, não ocorreu de maneira aleatória, mas como uma escolha política, diante mesmo da pequena eficácia das penalidades de natureza civil e administrativa aplicadas aos entes morais, afirma o relator. E continua:
— É sabido, dessa forma, que os maiores responsáveis por danos ao meio ambiente são empresas, entes coletivos, através de suas atividades de exploração industrial e comercial. A incriminação dos verdadeiros responsáveis pelos eventos danosos, no entanto, nem sempre é possível, diante da dificuldade de se apurar, no âmbito das pessoas jurídicas, a responsabilidade dos sujeitos ativos dessas infrações.
Tomando por base a doutrina, o ministro entende que a responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais surge, assim, como forma não apenas de punição das condutas lesivas ao meio ambiente, mas como forma de prevenção da prática de tais crimes, função essencial da política ambiental, que clama por preservação. — O caráter preventivo da penalização, com efeito, prevalece sobre o punitivo. A realidade, infelizmente, tem mostrado que os danos ambientais, em muitos casos, são irreversíveis, a ponto de temermos a perda significativa e não remota da qualidade de vida no planeta.
O ministro Dipp explica que países como Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, Austrália, França, Venezuela, México, Cuba, Colômbia, Holanda, Dinamarca, Portugal, Áustria, Japão e China já permitem a responsabilização penal da pessoa jurídica, demonstrando uma tendência mundial no sentido de admitir a aplicação de sanções de natureza penal às pessoas jurídicas pela prática de ofensas ao meio ambiente.
Para ele, a responsabilização penal da pessoa jurídica, sendo decorrente de uma opção eminentemente política, depende, logicamente, de uma modificação da dogmática penal clássica para sua implementação e aplicação. A imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras, assim, na suposta incapacidade de praticarem uma ação de relevância penal, de serem culpáveis e de sofrerem penalidades. — Ocorre que a mesma ciência que atribui personalidade à pessoa jurídica deve ser capaz de atribuir-lhe responsabilidade penal.
O relator entende que realmente não cabe aplicar a teoria do delito tradicional à pessoa jurídica, mas isso, a seu ver, não pode ser considerado um obstáculo à sua responsabilização, — pois o direito é uma ciência dinâmica, cujos conceitos jurídicos variam de acordo com um critério normativo e não naturalístico, como bem ressalta Fernando Galvão-.
Ele destaca as razões apresentadas pelo Ministério Público de que a responsabilidade penal desta, à evidência, não poderá ser entendida na forma tradicional baseada na culpa, na responsabilidade individual, subjetiva, propugnados pela Escola Clássica, mas deve ser entendida à luz de uma nova responsabilidade, classificada como social.
Assim fica o questionamento: de que forma a pessoa jurídica seria capaz de realizar uma ação com relevância penal? Para o relator, tudo depende, logicamente, da atuação de seus administradores, se realizada em proveito próprio ou do ente coletivo.
O ministro contesta o argumento de que as empresas não são suscetíveis da imposição de penas privativas de liberdade. Para ele pouco aceitável à sua responsabilização penal, pois o ordenamento penal brasileiro prevê outras sanções penais para os entes morais. A lei ambiental, por exemplo, determina para as pessoas jurídicas penas autônomas de multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica.
A conclusão do ministro é que, não obstante a existência de alguns obstáculos a serem superados, — a responsabilização penal da pessoa jurídica é um preceito constitucional, posteriormente estabelecido, de forma evidente, na lei ambiental, de modo que não pode ser ignorado- . Dificuldades teóricas para sua implementação existem, mas não podem configurar obstáculos para sua aplicabilidade prática, na medida em que o direito é uma ciência dinâmica, cujas adaptações serão realizadas com o fim de dar sustentação à opção política do legislador, entende.
Assim, determinou o recebimento da denúncia também com relação à empresa Auto Posto 1270 Ltda.ME pela prática de delito ambiental, — diante de sua legitimidade para figurar no pólo passivo da relação processual-penal. A decisão foi unânime. (Com informações do Superior Tribunal de Justiça de Santa Catarina, processo n°564960)