Entrevista Newton Burmeister: O Plano Diretor mudou na Câmara
2005-06-09
Desde que se afastou da Secretaria do Planejamento, ao final da gestão de Raul Pont, o arquiteto e urbanista Newton Burmeister, 67, não se pronunciou mais sobre Plano Diretor.
Ele não participou, por exemplo, de nenhuma das reuniões de avaliação da lei, que ocorreram a partir de 2003 e que seguem até hoje. Relutou para falar no assunto.
— Mas eu nem estou mais envolvido com isso, porque vocês querem me ouvir? - questionou, ao ser sondado pela reportagem. Depois de certa insistência, aceitou romper o silêncio, que já durava cinco anos.
— Não estou participando porque quero um distanciamento para poder dar uma contribuição melhor. Se entrasse no debate agora, iria defender o meu trabalho - justificou. Ele admitiu que continua acompanhando o assunto – reuniu em uma peça de sua casa centenas de anotações e documentos. Pretende escrever sobre o tema.
Autoridade para isso ele tem. Burmeister foi secretário de Obras na gestão de Olívio Dutra (1989-1992) e do Planejamento, com Tarso Genro (1993-1996) e Pont (1997-2000), o que significa dizer que acompanhou todo o processo de elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA).
Ele recebeu o Ambiente JÁ, na sua residência, na Três Figueiras, para uma conversa de pouco mais de uma hora. Ao final, confessou: —Fazia tempo que eu não falava desses assuntos.
Como começou a discussão do novo Plano Diretor?
Era a reavaliação do Plano Diretor de 1979, que depois passou a ser a proposta de um novo Plano. Eu administrei essa discussão, que começou na gestão do Tarso (Genro). O grande impasse foi estabelecer uma metodologia. Tivemos contatos com diversos grupos locais, faculdades de arquitetura. Depois com a FLACAN (Fórum Latino-Americano de Ciências Ambientais), através do (arquiteto argentino Rubén) Pesci e seu grupo. Isso ocorreu pela quantidade de profissionais da própria Secretaria do Planejamento que tinham feito cursos de metodologia, de pós-graduação lá na Argentina. O grupo do Rubén Pesci tinha experiência em método para avaliação, discussão e proposição de Planos Diretores. Eles têm nome internacional, por trabalhos na Argentina, América Latina, Espanha e Itália.
O resultado foi um Plano elogiado no papel. Mas se diz que só a parte construtiva foi posta em prática. É uma característica geral da aplicação de Planos Diretores. Eles devem trazer uma visão propositiva para uma estratégia de desenvolvimento da cidade. Todavia, a nossa estrutura do poder público sempre deu muito mais ênfase para a questão da ocupação do lote urbano. O novo Plano Diretor tentou assegurar que além de as secretarias desenvolverem seus aspectos cotidianos, de manutenção, conservação, elas tivessem representação dentro do Conselho do Plano Diretor, para acompanhar, corrigir, reavaliar as questões que envolvem o desenvolvimento estratégico da cidade. Mas essas estruturas tecno-burocráticas têm uma cultura muito forte de só cuidar de como se edifica na cidade: taxa de ocupação do terreno, afastamento, altura, etc. Elas desdobram pouca coisa além disso. Nas secretarias de Obras e de Planejamento existe uma grande quantidade de técnicos muito bons, capacitados, aptos, mas que ficaram dentro das camisas-de-força do “construir”. É a cultura de cuidar só de como se constrói na cidade, que não é a coisa mais importante. Perde-se muita massa crítica fazendo coisas menores, quando poderia se usar ela na questão do pensamento estratégico da cidade.
E a participação da população no Plano?
Houve muita falta de informação. Hoje, lendo o noticiário, vejo manifestações até de pessoas que estão no atual governo e que nunca apareceram nas centenas de debates sobre o Plano Diretor. Nunca! E, de repente, aparece o cara e acha que o negócio está mal. Algumas estruturas estão sendo acionadas hoje, na continuidade da discussão do desenvolvimento urbano: as 16 regiões do Orçamento Participativo e as 8 dos Fóruns de Planejamento. Isso criou uma base que está sendo utilizada, não existia antes. Então, há os que criticam essas situações mas que utilizam as estruturas que o novo Plano propôs. Agora, um Plano Diretor não é impositivo, mas sim um plano de diretrizes, de ação permanente, de avaliação periódica. E se as pessoas acham que as coisas que foram propostas não são boas, é preciso ver isso sob a ótica do que a sociedade está dizendo, os moradores, as estruturas organizadas, etc. Tem que dizer não está bom.
Mas o Plano não passa a ser impositivo, na medida em que dezenas de associações, organizadas, representativas, dizem, desde 2003, que não estão de acordo, por exemplo, com a verticalização e densificação da área central, e não conseguem mudar isso?
O Plano define alguns parâmetros, a partir de informações, características da cidade, pela qual ela foi construída, dividida, e joga isso para dentro do espacial. São situações baseadas na experiência dessa própria cultura interna do Município, na experiência de pessoas bastante vivenciadas. Claro que nessas coisas tem disputas. O Sinduscon esteve permanentemente dentro de todos os grupos de trabalho, de todas as comissões, nunca se omitiu das reuniões, nem das que eram lá nos confins da cidade. Estiveram lá e tinham sua estratégia, seus objetivos, legítimos. Qual é a posição do Sinduscon? Eu quero construir mais, mais alto, etc. O que alguns setores faziam? Não, não pode ser tanto assim, tem que manter situações, etc. Mas acontece é que o Plano Diretor é montado, depois é feito um projeto de lei que é mandado para a Câmara. E a Câmara tem outra sensibilidade.
O Plano mudou na Câmara?
Mudou na Câmara.
O quê?
Mudou a altura, afastamentos. E veja: continua na discussão do construir. As visões estratégicas da cidade sequer transitaram lá, não teve discussão. Agora, quando chegou na questão da altura, da taxa de ocupação, do índice de aproveitamento... A Câmara tem outras sensibilidades, outros canais de comunicações, que não são os que a estrutura que concebeu o Plano tinha. Ali as partes interessadas falam direto com os vereadores. E havia ainda, felizmente, a equipe técnica da Câmara, mas que não estava lá com a visão dos grupos que estavam discutindo fora. As informações foram gestionadas no âmbito da Câmara. E o processo legal, democrático, é esse. É feito um projeto de lei, que se acredita, é o melhor que o Executivo pode propor para a cidade, ouvindo os grupos envolvidos. Agora, quando entra para a Câmara, entra para a Câmara. E essas situações foram muito fortemente contestadas, especialmente a questão de alturas. Na proposta original, eram praticamente mantidos os mesmos padrões de alturas existentes no Plano Diretor. Houve uma pequena mudança de taxa de ocupação e de afastamento – passou de 1/20 para uma outra fraçãozinha que aumentava mais 50cm, algo assim... As partes interessadas nesse processo disputavam o centavo.
E antes da Câmara, a população estava alheia ou houve embate?
Essa situação apareceu na Três Figueiras, por causa do Projeto Hermes, que foi aprovado na legislação anterior. Houve algumas mobilizações, até com contrariedades pessoais ao projeto, alegando que aquelas edificações no terreno no Projeto Hermes iriam comprometer o bairro Três Figueiras como um todo.
Foi um caso isolado? Houve outras queixas sobre alturas?
Isso não apareceu nos debates feitos nas diversas regiões. Essa situação que tem a ver com a altura das edificações, e nada mais, não apareceu. Apareceu em algumas disputas. O Sinduscon reivindicou mais altura, trazendo técnicos e provando argumentos sobre esse aspecto. E os dois pólos se conformaram com o acordo que foi feito.
Mas as lideranças comunitárias só se deram conta quando sentiram na pele o efeito. O Moinhos Vive, por exemplo, só surgiu no final de 2002.
Mas aí é outra coisa, trata-se de manter a identidade do bairro. O que é o Moinhos de Vento? É um bairro que foi estruturado nos anos 1940, 50, 60, com casas unifamiliares de muito bom nível, como havia também na Carlos Gomes. Residências que desfrutavam das melhores condições de localização na cidade. É o caso do Petrópolis, Rio Branco, Bela Vista, todos com essas características. O que aconteceu? As famílias que se estabeleceram nos anos 50, 60, faziam casas com 4 quartos. Aí a família cresce, um se casa, outro se casa... e a residência fica de herança. Ela deixa de ser a casa unifamiliar e passa ser uma herança, cujo regime urbanístico anterior previa a possibilidade de se construir um edifício. Chega um cara e propõe: — Eu compro essa casa, construo um edifício e te dou apartamentos- Essa situação não apareceu agora, ela vem da cultura do desenvolvimento da cidade.
Mas esse exemplo foi a regra?
A cidade disponibiliza infra-estrutura, que é cara. Então, tem-se que jogar com o potencial de densidade que ela assimila. Numa quadra que permitia fazer 50, 60 unidades, passou a existir um potencial de aproveitamento da infra-estrutura existente, do sistema viário, da iluminação, energia, água, esgoto, que possibilitava uma densificação maior.
Isso já era possível, não foi mudado pelo Plano Diretor?
Já era, sim. O que aconteceu nesses períodos, na sucessão dos diversos planos existentes, e nas suas readequações, foi o aproveitamento das infra-estruturas que possibilitavam aumentar as densidades, o que significa construir em altura. Isso foi apresentado por um professor da UFRGS nos debates do Plano, fazendo com que as pessoas entendessem o porquê da densificação. Agora, não dá para congelar um bairro pura e simplesmente para manter a sua paisagem, porque é uma deseconomia para a cidade. E Porto Alegre teve aumentos consideráveis de população a partir dos anos 60. Nós dobramos a população de 1960 para 2005. Isso significa que temos que organizar o espaço urbano para que ele assimile esse crescimento da população.
O conflito entre essa idéia de aproveitar a infra-estrutura e o desejo de manter as características do bairro não seria atenuado se as outras estratégias fossem implementadas, como a qualificação ambiental, a proteção do patrimônio histórico... Mas todas essas questões foram abordadas no conjunto.
AJ — Mas não saíram do papel.
NB — São diretrizes para o desenvolvimento urbano.
AJ — Não implantadas. A Zona Sul, por exemplo, está sendo preservada?
NB — A Zona Sul tem uma característica extremamente peculiar. Tanto que surgiu nesse novo Plano o chamado espaço Rururbano, que é uma característica de desenvolvimento sustentado que se busca para esse região, identificando nele a questão de paisagem. Isso está muito bem explicitado no Atlas Ambiental de Porto Alegre, foi muito bem caracterizado.
Bem caracterizado no mapa. Mas está protegido por lei?
O mapa é uma espacialização de intenções. Agora para isso acontecer, providências devem ser tomadas pelo Poder Executivo, pelas associações comunitárias. Porque a gestão desse Plano não é exclusiva do Executivo, é uma gestão dos Fóruns das Regiões de Planejamento, que tem essa capilaridade, permite que o morador informe que há ocupação em áreas de valor ambiental, situações como esses novos tipos de condomínios que vem sendo construídos...
Há queixa que esses condomínios estão mudando a chamada Cidade Jardim.
São situações sobre as quais se tem determinado controle, mas não controle absoluto. Define-se a densidade, o tamanho de área... Eu me criei na Vila Assunção. Quando me mudei eu dizia: “meu Deus!, mas isso é lá no fim do mundo”. O bairro onde eu moro hoje, o Três Figueiras, em 1960 era um lugar em que se vinha fazer piquenique, era a Chácara do seu Müller. Então a cidade tem essa característica dinâmica. Temos que entender isso. Não se pode avaliar a cidade de 2002 para 2003, ela tem que ser medida em décadas.
E nessa meia década de Plano. Já dá para sentir algum efeito?
Ele aparece preliminarmente nas edificações. Primeiro porque o plano estratégico da descentralização é mais demorado. O Plano anterior tinha duas décadas de implementação e subsidiou essa nova proposta com aquilo que ele previa, tanto o que ocorreu como o que ele previa e não ocorreu. Aí dá para fazer uma avaliação crítica, sólida. Agora, quando se aprova um Plano em 2000, e em 2003 se diz que ele não está bom, analisando só a questão da edificação, é um equivoco. É um desenfoque do caráter estratégico que tem um Plano Diretor.
Mas se analisa só a construção porque o resto não saiu do papel.
Bom, mas isso são ações estratégicas que devem ser implementadas, o que requer ações de implantação e consolidação paulatinas. Tem que haver insistência em manter aquela diretriz, porque caso o contrário, o Plano corre o risco de se esvair. As pessoas esquecem, fica a letra morta da lei. Os corredores de centralidade tem que ser insistentemente buscados.
E o plano viário do cidade?
As diretrizes são boas, mas tem que existir uma ação articulada das secretarias. Não pode só a Secretaria do Planejamento ser a responsável por isso. Ela tem que se articular com Smam, EPTC, Smic. E também os serviços de infra-estrutura, Smov, DEP, Dmae, eles devem estar presentes porque têm as medidas do que existe e das necessidades. A questão do sistema viário é importante, também porque é um fator indutor de novas centralidades. Por exemplo, o corredor Anita-Nilo alcança as bordas da cidade, para o lado do Parque Chico Mendes.
AJ — Mas isso é para muitos anos...
NB — Tem que começar assim. Porque se essa perspectiva for analisada a curto prazo, não se realiza. Tem que ser ações estratégicas, porque senão passam a ser ações momentosas, de uma ansiedade precipitada. O planejador tem que relativizar o tempo. Existem coisas que acontecem em longo prazo. A Terceira Perimetral, por exemplo, foi concebida em 1959 e consolidada em 1963. E se realizou 40 anos depois. Esse percurso de 12km, seria impossível se não fossem tomadas providências de afastamento, deixar disponíveis terrenos para fazer a via. Seria impossível pelos valores de desapropriação, que a cidade não seria capaz de pagar. São situações que podem vir a ocorrer daqui 30, 40 anos. São gerações que precisam ser articuladas, mobilizadas, convencidas, e que devem estar informadas. Essa ação que vocês (Jornal JÁ) estão fazendo agora, de informar, publicar, antecipar o debate, fazer as pessoas pensarem no assunto, é de grande valia, é extremamente útil para a cidade, porque só através desses meios as pessoas podem se mobilizar, se interessar e participar dessas estruturas de planejamento.
Ingenuidade: — As outras estratégias não foram discutidas na Câmara. Achei que não fosse por falta de interesse e sim porque estava tudo certo.
(Guilherme Kolling)