Artigo: Barra Grande - a culpa é de quem mesmo?
2005-05-30
por Rogério Santos Rammê
Afirmar que o caso foi trazido tardiamente ao Judiciário é o mesmo que culpar os ambientalistas pela tragédia que está na iminência de acontecer.
Não restam mais dúvidas de que o litígio judicial que se criou acerca do licenciamento ambiental da hidrelétrica de Barra Grande é um dos mais emblemáticos dos últimos tempos. Por diversos aspectos. O licenciamento da hidrelétrica em questão está lastreado em dados falsos, contidos no Estudo de Impacto Ambiental do empreendimento. Situações como essa recebem da melhor doutrina de direito ambiental vigente um tratamento rigoroso: — Omissões e distorções no processo de avaliação maculam visceralmente o Epia, bem como o Rima a ele atrelado, Se o estudo apresentar-se incompleto, IMPERFEITO, merecendo reparos em pontos essenciais, qualquer avaliação que dele se fizer no contexto de uma audiência pública padecerá também dos mesmos vícios, porquanto não terão sido discutidos pela comunidade todos os aspectos relativos ao empreendimento. E, com sobras de razão, viciada estará a licença ambiental, caso venha a ser deferida com base em um Epia lacunoso e imperfeito. (Citação de Nicolau Dino da Costa Neto, no artigo Aspectos da Tutela Preventiva do Meio Ambiente: Avaliação de Impacto Ambiental e Licenciamento Ambiental)
Como se vê, as imperfeições, omissões, vícios e distorções existentes no Estudo de Impacto Ambiental da hidrelétrica de Barra Grande deveriam acarretar a declaração de nulidade de todas as licenças posteriores e, com base neste estudo, emitidas. Mas não acarretaram. Pelo contrário, diante de uma ação civil pública, promovida por entidades ambientalistas que compõem a sociedade civil organizada, o Poder Público, nele compreendido os Ministérios de Minas e Energia e do Meio Ambiente, a Advocacia Geral da União, o Ministério Público Federal, juntamente com o empreendedor, Baesa S/A, formalizam um termo de compromisso onde são adotadas medidas compensatórias para os danos ambientais oriundos da supressão de uma área de cerca 8.000 hectares de mata atlântica com araucárias.
O Poder Judiciário se dividiu, mesmo diante da celebração deste acordo, que, diga-se de passagem, não teve qualquer tipo de participação ou consulta da sociedade civil. Em primeira instância, na ação civil pública acima comentada, o juiz federal da 3ª Vara Federal de Florianópolis deferiu liminar suspendendo as licenças concedidas e determinando a paralisação do desmatamento das florestas. Mas o TRF da 4ª Região entendeu por cassar a ordem. Paralisar o desmatamento de mata atlântica é algo que ofende a economia pública, disseram; portanto, casse-se a ordem!
Quando tudo parecia perdido, eis que, novamente na primeira instância, em recente ação cautelar interposta pelo Núcleo Amigos da Terra Brasil, é deferida nova liminar autorizando a realização de prova pericial na região ameaçada de inundação, com o intuito de quantificar a extensão dos danos ambientais decorrentes da supressão da flora e fauna existentes e da posterior inundação, uma vez que não existem estudos conclusivos sobre o que se perderá. Porém, novamente o TRF da 4ª Região cassa a ordem, e, desta vez, além do argumento de que existe ofensa à ordem econômica, alega, ao contrário do que manifestou o próprio perito designado para realização da perícia, que esta é impossível de ser realizada, e que a fraude foi trazida tarde demais para a apreciação do Poder Judiciário.
A obra teve seu início no ano de 2001 e somente em 2004 o caso foi trazido à apreciação do Poder Judiciário! Portanto, calem-se, ambientalistas, assumam sua culpa! Onde estavam as ONGs que não descobriram a fraude no tempo apropriado? Preocupavam-se com amenidades como a preservação da Amazônia, a luta contra os transgênicos, a caça das baleias, o tráfico de animais silvestres, a camada de ozônio, lutavam contra a poluição do ar, das águas? Ora, onde estavam e o que faziam os ambientalistas que não enxergaram a fraude de Barra Grande antes?
Um argumento como esse, de que a fraude foi trazida tardiamente ao Judiciário, beira ao absurdo. O TRF, mantida essa decisão, estará praticamente decretando que a apuração de um dano ambiental prescreve em três anos, algo inédito, pois sabe-se que a melhor doutrina defende a imprescritibilidade do dano ambiental, dada sua natureza difusa.
Afirmar que o caso foi trazido tardiamente ao Judiciário é o mesmo que culpar os ambientalistas pela tragédia que está na iminência de acontecer. Mas devemos refletir sobre quem são os verdadeiros culpados. Quem deveria ter verificado a tempo as omissões e distorções do Estudo de Impacto Ambiental do empreendimento? A sociedade civil? Os ambientalistas? Ou o Ministério do Meio Ambiente, através do Ibama? Quem deveria ter tomado a iniciativa de provocar o Judiciário, por dever de ofício? A sociedade civil? Os ambientalistas? Ou, quem sabe, o Ministério Público Federal?
E por fim, quem teria obrigação de reconhecer os vícios existentes, que maculam visceralmente o licenciamento ambiental como um todo, e aplicar a legislação ambiental, assegurando a proteção deste patrimônio nacional constitucionalmente protegido e salvaguardando espécies endêmicas da flora e da fauna de uma real ameaça de extinção, se não o próprio Poder Judiciário?
Afinal, a culpa é de quem mesmo? O futuro dirá...
Rogério Santos Rammê é advogado especialista em Direito Ambiental, membro consultor da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RS e consultor jurídico-ambiental do Núcleo Amigos da Terra Brasil. (fonte: EcoAgência, 28/05/2005)