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2005-05-19
O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Franciso divulgou uma nota em que contesta as afirmações do governo federal, especialmente do ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, de que o órgão teria autorizado ou apoiaria o projeto de transposição do rio. O texto questiona a disponibilidade de água alegada pelo governo para a realização da obra e volta a denunciar o comprometimento de qualquer possibilidade de desenvolvimento futuro para a região. O Comitê é o responsável legal pela elaboração do Plano de Recursos Hídricos da Bacia do Rio São Francisco e conta com a participação da sociedade civil organizada e de vários níveis de governo de todos os estados da bacia.

Nota pública de esclarecimento do comitê da bacia hidrográfica do são francisco Diante das constantes manifestações do Ministro Ciro Gomes, envolvendo o nome e as decisões do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco e a utilização do Plano de Recursos Hídricos da Bacia para justificar a realização do projeto de transposição, torna-se necessário:

• contraditar as suas afirmativas e insinuações de que o Comitê aprovou o projeto de transposição defendido pelo governo federal.
• declarar que tais afirmações transmitem à Nação Brasileira a falsa idéia de que o projeto conta com o apoio do Comitê, o que significa desacreditar esse organismo junto à sociedade civil, usuários e poderes públicos da bacia.
1. Real decisão do Comitê

• Fazendo uso de suas prerrogativas legais, definidas na Lei das Águas (Lei 9.433/97), o Comitê definiu que as prioridades de uso das águas do rio São Francisco, como insumo produtivo, é o atendimento às demandas internas da bacia, não autorizando o seu uso para transposições com fins econômicos, como é o caso do atual projeto do Governo Federal, em particular, no que se refere ao eixo norte. Solidário com o povo nordestino que sofre com a seca no semi-árido, o Comitê aprovou o uso externo das águas do rio São Francisco para abastecimento humano e dessedentação animal, em situações de escassez comprovada.

• No entendimento do CBHSF, o atual projeto de transposição, particularmente o eixo norte, é essencialmente um projeto de interesse econômico, sendo apenas uma pequena parcela das águas, em valor bastante inferior a 26 m3/s, destinada ao consumo humano e animal.

• O Plenário do CBHSF, respaldado em estudos técnicos e em amplas consultas públicas em todos os Estados da Bacia, rejeitou categoricamente, em várias ocasiões, o atual projeto de transposição, em particular o eixo Norte. O Plano de Recursos Hídricos da Bacia, ao contrário do que divulga o Ministério, deixa claro que o atual projeto de transposição trará prejuízos e sérias restrições ao desenvolvimento futuro da bacia, com perspectiva de esgotamento da disponibilidade hídrica para usos consuntivos (vazão que pode ser retirada do rio) em um horizonte de 20 anos, constituindo-se, portanto, em um projeto de transferência de emprego e renda.

2. Atropelo legal e institucional e Outorga Preventiva
• A Diretoria do CBHSF informa à Nação Brasileira que, longe de agir de forma democrática e legal, o Governo Federal tem atropelado os princípios do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e as competências legais do Comitê e o Plano de Recursos Hídricos da Bacia, definidas na Lei da Águas (Lei 9433), contando para isso com a aquiescência de todas as instâncias do MMA relacionadas à gestão dos recursos hídricos e ao licenciamento ambiental do empreendimento.

• Apesar da Lei 9433/97 e das Resoluções do CNRH serem claras ao definir que a concessão de outorgas deve respeitar as prioridades e critérios definidos nos Planos de Recursos Hídricos da Bacia (Art.13 da Lei da Águas), a Agência Nacional de Águas concedeu outorga para o atual projeto de transposição, em franco desrespeito às decisões contidas no Plano da Bacia do rio São Francisco, uma vez que permite a retirada de águas até a vazão máxima diária de 114,3 m3/s, para todos tipos de usos, inclusive irrigação.

• Afirmar que os 26 m3/s são destinados ao consumo humano, considerando apenas as demandas projetadas até o ano 2025 sem descontar a disponibilidade de água já existente na região receptora, é apenas uma manobra para esconder a real utilização econômica destas águas. Esta afirmativa é desmentida pela própria outorga preventiva (Art. 1º, parágrafo 2º) que reconhece que não há demanda desta ordem de grandeza e autoriza o uso dos 26 m3/s para finalidades econômicas, enquanto a demanda real for inferior à demanda projetada.

• Não corresponde à verdade a afirmativa, freqüentemente vinculada pelo MI e pelo próprio Ministro, de que a retirada de água acima dos 26 m3/s se dará apenas quando Sobradinho estiver vertendo. A outorga preventiva, concedida pela ANA, autoriza a retirada sempre que o nível da barragem de Sobradinho estiver acima do volume de espera de cheias o que, na maior parte do ano, está bem abaixo do nível de vertimento. Assim, divulga-se para a nação brasileira que se vai retirar água para usos econômicos apenas quando a barragem estiver sangrando mas, esta não é a realidade, pois a retirada está autorizada para situações em que o reservatório não estiver cheio.

3. Real impacto da vazão destinada à transposição

As constantes afirmativas de que se vai retirar apenas 1% das águas que perdidas para o mar, constituem grosseira manipulação da realidade:
• Escondem o fato de que cerca de 80% das águas do rio São Francisco estão reservadas para a geração de energia elétrica que garante o desenvolvimento, a qualidade de vida e a segurança energética do Nordeste. O cálculo de 1% é inadequado, pois toma por base a vazão média histórica que não corresponde à realidade observada na foz, após a construção das grandes barragens, e embute uma visão extrativista de que toda a vazão do rio está disponibilizada para ser retirada. Utilizar tal raciocínio, seria o mesmo que admitir a morte futura do rio por excesso de retirada.

• Ao contrário, para garantir as condições mínimas do rio, na foz, o Pacto de Gestão das águas da bacia, contida no Plano de Recursos Hídricos, fixa que a vazão máxima que pode ser retirada é 360 m3/s, dos quais ainda restam 269 m3/s. É sobre este saldo existente para todos os usos consuntivos nos 7 Estados da bacia, que deve ser realizado o cálculo: assim, a transposição pretende retirar não apenas 1%, mas entre 24% (vazão média) e 47% (vazão máxima).

• Sob o ponto de vista essencialmente econômico, escondem o fato de que toda a água que chega ao mar passou antes pelas turbinas, gerando energia elétrica (nos últimos 12 anos, as exceções foram os vertimentos em fevereiro de 2004 e 2005).

• Sob o ponto de vista sócio-econômico e ambiental, mostram um desconhecimento da função ecológica destas águas no próprio curso do rio, foz e zona costeira, além de se configurar profundo em relação ao sacrifício que já é imposto ao ecossistema e às populações que dependem do rio, em conseqüência dos impactos negativos gerados pela construção e operação das grandes hidrelétricas. Só para exemplificar, a regularização da vazão do rio está provocando o avanço do mar no litoral norte de Sergipe, tendo a erosão já levado à destruição dois povoados (um em 1998 e outro em 2005) na foz do rio São Francisco.

4. Acusações
Empobrece o debate e desrespeita os mais elevados valores republicanos da sociedade brasileira, qualificar de charlatões e egoístas aqueles que defendem a aplicação da lei, o respeito ao Plano de Recursos Hídricos, a sustentabilidade e legítimos interesses da bacia do rio São Francisco, e que se dedicaram ao aprofundamento do conhecimento sobre as condições hidro-ambientais e da complexa gestão da bacia do rio São Francisco e do próprio projeto de transposição. Tal atitude atinge o Comitê e a integridade moral e profissional de todos os técnicos e pesquisadores que têm prestado um valioso serviço ao sistema nacional de recursos hídricos, negando-se a se calar diante da pressão exercida pelo governo federal para a aprovação deste projeto, a qualquer custo.

Seria de se esperar que houvesse maior diálogo na condução de um projeto que pretende privilegiar uma região, cujos responsáveis estão sendo alertados pelas maiores autoridades de diferentes áreas de conhecimento afins de que isto será feito em detrimento da segurança hídrico-ambiental e do desenvolvimento de outra (na qual as condições climáticas e sociais são semelhantes).

Tampouco os defensores do projeto de transposição conseguiram demonstrar ser ele urgente e necessário e quais os seus reais benefícios e beneficiários. No entender do Comitê, da SBPC, do Banco Mundial e de inúmeros cientistas, a transposição nunca poderia ser o ato inicial de uma solução integrada para o semi-árido, mas a última etapa de um conjunto de ações que deveria começar por uma efetiva democratização do acesso à água, através da distribuição do estoque de água já existente, tanto na região receptora como doadora, pela revitalização da bacia do rio São Francisco e pelo investimento maciço em soluções de convivência com a seca para a população dispersa do semi-árido brasileiro, quase metade dele contido na própria bacia do rio São Francisco.

Transposições envolvem questões complexas, comprometem toda a gestão das bacias envolvidas, despertam e acirram conflitos que tendem a se perpetuar e agravar-se. Por isso mesmo, não podem ser iniciadas sem ser precedidas da necessária pactuação, de preferência no âmbito do Congresso Nacional, a exemplo de outras experiências internacionais.

Com estas convicções, e sempre aberto ao diálogo que é a essência da gestão democrática do Estado, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco lamenta que o Governo Federal tenha iniciado o processo licitatório das obras de transposição do rio São Francisco sem construir, no âmbito do pacto federativo, um amplo entendimento que possa reunir em torno dos mesmos objetivos os Estados Federados que compõem a Bacia doadora e as bacias receptoras. (Eco Agência, 17/05)

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