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2005-05-05
O biólogo João Paulo Ribeiro Capobianco, 42, vive há pouco mais de dois anos o sonho e o pesadelo de todo ambientalista - ser governo. Capobianco sempre militou em ONGs como SOS Mata Atlântica e Instituto Socioambiental (ISA). Agora, no cargo de secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA), está na posição de enfrentar, além de madeireiros e grileiros, seus antigos aliados. – Falta um projeto histórico, estratégico, para o ambientalismo brasileiro, acusou, após a conclusão da entrevista.

Capô, como é mais conhecido, se prepara no momento para a divulgação das taxas anuais de desmatamento na Amazônia, um evento invariavelmente traumático para o MMA, mais ainda para Marina Silva, por sua trajetória dos seringais do Acre até a cadeira de ministra. Ele sabe que a cifra na casa dos 23 mil a 24,4 mil km2 a ser anunciada -uma área superior à do estado de Sergipe será mais uma vez interpretada pelos defensores da floresta como uma derrota. A resposta já está na ponta da língua: – É uma vitória.

Uma vitória seguida de vários qualificativos, porém. Na sua visão, a única coisa a comemorar é a alegada reversão da tendência de alta que Marina Silva herdou da era FHC. Com efeito, em 2002, a taxa anual havia sofrido um aumento de 28%; no ano passado, ao que tudo indica, estacionou. – É a primeira vez que nós temos estabilização de taxa em período de aquecimento econômico.

Leia a seguir a entrevista concedida por telefone pelo secretário:

Folha - No ministério se fala em estabilização da taxa de desmatamento. Na verdade, 23 mil km2 é um número absurdamente alto, que já não pode mais ser atribuído a políticas do governo anterior. A gestão Marina Silva está fracassando no controle da devastação?

Capobianco - Não, de forma alguma. Primeiro, porque é a primeira vez que nós temos estabilização de taxa em período de aquecimento econômico. Há uma correlação direta entre crescimento econômico e desmatamento. E nós temos, nesse caso, uma estabilização, com tendência de queda num período de aquecimento econômico enorme. Esse é um aspecto positivo. Segundo, nós recebemos um índice, com uma taxa de crescimento de 28%. Reverter uma curva de crescimento dessa magnitude é extremamente difícil. Embora o governo e a ministra não comemorem, porque é inaceitável comemorar um valor tão alto de desmatamento, a estabilização é uma vitória da atual gestão. O desafio é provar a tese de que é possível reverter o desmatamento de forma estrutural, sem pirotecnia, sem medida provisória, sem decreto. Nós vamos ter de provar nesses dois anos agora, principalmente em 2005.

Folha - E como querem fazê-lo?

Capobianco - Ao longo dos últimos anos, todos nós, seja os que estavam no governo ou fora do governo, atuávamos com o enfoque quase absoluto no chamado comando e controle: lei, decreto, medida provisória. Quando no governo passado se atingiu o recorde histórico de 29 km2, a resposta foi a medida provisória que aumentou de 50% para 80% a reserva legal na Amazônia. E um incremento da fiscalização. A atual proposta é um incremento da fiscalização, também, porque ela é fundamental, mas tratar outros dois problemas que nunca foram adequadamente tratados.

Folha - Quais?

Capobianco - A questão do ordenamento fundiário. Nós viemos de um período de 20 anos sem nenhuma regularização fundiária na Amazônia. O Incra aceitava protocolos repetidos de reconhecimento de posse e há 20 anos não checava esses processos, não ia a campo. Nós fizemos uma ação importantíssima no final do ano passado, que suspendeu os procedimentos de emissão de protocolos, que eram transacionados no mercado imobiliário e serviam, inclusive, de documento para autorização de desmatamento.

Folha - O grosso do desmatamento não ocorre em terras públicas?

Capobianco - No ano passado, no Estado do Pará, foram praticamente todos em terra pública.

Folha - Mas esse não é o caso de Mato Grosso, não é?

Capobianco - O Estado de Mato Grosso é diferente, porque tem uma quantidade de terra privada grande. O que a gente verifica ali é um desmatamento excessivo, inclusive em áreas sem possibilidade nenhuma de desmatamento legal, áreas ditas de proteção permanente, as APPs. Os próprios dados do sistema de Mato Grosso revelaram que, em 2003, eles registraram cerca de 18 mil km2, incluindo cerrado, sendo que desses 18 mil eles tinham autorizado um pouco mais de 5.000. Então, mesmo que tenha ocorrido em propriedade privada, é um altíssimo índice de desmatamento ilegal.

Folha - Isso não prova que um instrumento eficiente, de alta tecnologia, pode não funcionar?

Capobianco - Ele não funciona se não houver as ações para dar conseqüência a isso.

Folha - Você está dizendo que o governo de Mato Grosso não fez as ações que devia fazer e que o governo federal está fazendo?

Capobianco - De fato o governador não fez o que devia fazer. Não há dúvida. Agora, ocorreria o mesmo caso em nível federal se os dados do Deter [sistema lançado no fim de 2004 para detectar o desmatamento em tempo real] não gerassem conseqüências, porque nós teríamos apenas um número de desmatamento, certo? Com o único objetivo de, sei lá, masoquismo. Mas o Deter não foi implantado isoladamente, está dentro do Plano de Prevenção e Controle de Desmatamento, associado a um aumento expressivo da capacidade de fiscalização.

Folha - Existe hoje uma grande polêmica sobre o papel da soja no desmatamento da Amazônia.

Capobianco - No ano de 2003 a soja já aparecia como um elemento de contribuição significativa para o aumento. Isso foi agravado na avaliação de 2004. Portanto, nós não temos dúvida de que a soja é um elemento a mais, importante, e do ponto de vista recente, um dos mais importantes, que contribuem para o crescimento do desmatamento. Agora, é importante deixar claro que não é a soja, é a forma como ela tem sido implementada. Nós temos já desmatados na Amazônia mais de 650 mil km2 e, destes, as estimativas do IBGE apontam que pelo menos 160 mil km2 estão subutilizados ou abandonados. O crescimento da soja, que é desejável do ponto de vista até da economia, tem espaço para se dar.

Folha - A aprovação da Lei de Biossegurança foi uma derrota de Marina Silva frente ao Ministério da Agricultura?

Capobianco - O ministério não faz a leitura de uma derrota frente a outro ministério, mas de que, de fato, nós fomos incapazes nesse cenário de construir a solução como nós preferiríamos. Essa posição foi construída não por um ministério ou outro, mas numa correlação de forças com a sociedade em que, inclusive, a imprensa desempenhou um papel central na defesa de uma tese.

Folha - Qual?

Capobianco - Na defesa dos transgênicos. A imprensa jogou fortíssimo nessa tese. Diria mais, diria que explorou essa questão do enfraquecimento de um versus outro como estratégia, inclusive, para aprovar uma visão.

Folha - Qual a chance, na sua avaliação, de que a Marina Silva saia do governo com menos prestígio do que entrou, como a ministra que se bateu pela questão ambiental enquanto era imolada no altar da competitividade e da exportação?

Capobianco - Eu não vejo essa possibilidade. Acho que a ministra está pagando um preço alto por ter adotado um procedimento de transformar políticas da área ambiental em políticas de governo. Quer dizer, ela se recusou a adotar uma postura de ser uma representação isolada de interesses isolados de setor isolado da sociedade. E isso tem um custo, porque nunca houve a questão ambiental inserida nas políticas públicas do conjunto do governo, e ela está construindo isso. Ela construiu isso no setor de energia. Construiu isso no setor de petróleo e gás. Pela primeira vez na história nós temos exclusão de blocos, nos leilões de petróleo, considerados inadequados do ponto de vista da questão ambiental. Nós iniciamos o governo em pé de guerra com o setor empresarial e estamos já, no meio do governo, num processo extremamente positivo com esse setor.

Folha - A revista Exame publicou uma foto da ministra com uma frase embaixo afirmando que um dia o país ainda faria a conta de quanto perdeu em cada dia de trabalho da Marina Silva. Como se explica que ela tenha uma imagem tão ruim no meio empresarial?

Capobianco - Nós temos uma agenda com o meio empresarial extremamente positiva. Estamos construindo uma agenda com o setor de cosméticos e farmacêutico, inédita. Veja o caso das hidrelétricas, onde havia dezenas de usinas já licitadas, já com outorga concedida, mas que não eram implementadas, porque o governo não tinha coragem de negar. Num período de depressão econômica como o Brasil viveu durante muitos anos, isso teve um efeito menor. Num período de aquecimento, essa contradição é maior.

Folha - Marina vai então sair aplaudida pelos empresários?

Capobianco - Com certeza.

Folha - Pela revista Exame, também?

Capobianco - Não sei se pela imprensa. O fato é que a preocupação não é ser aplaudida pela imprensa. É óbvio que ser reconhecida pela imprensa é importante, para uma pessoa que tem uma carreira política, mas essa não é a questão central para a ministra.

Folha - O Projeto de Lei 4.776, que estabelece as concessões florestais em terras públicas, tem recebido críticas de personalidades como Aziz Ab Sáber e Maria Tereza Jorge Pádua. O grande temor é que as dificuldades do Ibama criem uma nova oportunidade para proliferação de cortes ilegais. Como é que o governo pretende combater isso?

Capobianco - Essa preocupação justa se baseia num histórico de baixa capacidade de operação do poder público em geral. Nós temos duas hipóteses: ou conseguir uma força de fiscalização monumental para proteger os 45% da Amazônia que são terras públicas, ou nós temos de contar com um setor que nós acreditamos ser um parceiro essencial para a região, o setor de uso sustentado de recursos florestais, que não tem onde operar porque em terra pública ele não pode operar.

Folha - Setor de uso sustentado de recursos florestais é um eufemismo para setor madeireiro?
Capobianco - Não é só madeireiro. Nós temos...

Folha - Mas principalmente madeireiro, não é?

Capobianco - Não, a indústria de cosméticos cresce brutalmente.

Folha - Sim, mas não se compara ao madeireiro em porte, em quantidade de empregos.

Capobianco - Hoje, o setor madeireiro é o mais expressivo. No caso do Pará, é 40% do PIB. Isso num cenário em que as potencialidades da floresta são subutilizadas. Nós temos de implementar o uso múltiplo das florestas, que são três grandes blocos: os serviços ambientais, que precisam ser valorados e gerar recursos; o turismo, outro potencial enorme na região Amazônica; e produtos madeireiros e não-madeireiros. Nós podemos fazer uma proposta de moratória: não se faz mais nada. Coloca o Exército, a Marinha e a Aeronáutica para proteger e ignora o setor produtivo que está lá.

Folha - Não iria funcionar, como nunca funcionou.

Capobianco - Nós acreditamos que esse seja o caminho para a destruição da Amazônia. Estamos cansados de receber aqui propostas de moratória total, de paralisação do setor madeireiro.

Folha - O sr. diria que as pessoas que estão contra as concessões florestais o fazem por déficit de pragmatismo, por preconceito, porque pararam no tempo? Até anteontem estavam todos no mesmo barco.

Capobianco - O barco do ambientalismo há muito tempo se dividiu. Há um movimento forte que cresceu principalmente a partir da Rio-92, o do socioambientalismo. Esse setor cresceu muito. Ele apóia o projeto de lei, evidentemente com reparos aqui e ali. Há [também] um setor preservacionista, que acha que a melhor solução para preservar o ambiente é extinguir o homem. Nós não compartilhamos essa visão.

Nós temos de criar as oportunidades para que as florestas públicas, que são a maioria da Amazônia hoje, permaneçam públicas e se permita, sob critérios rigorosos, o acesso a determinados recursos. Dizer que o governo sempre será incapaz de fiscalizar e que, portanto, ele não deveria fazer isso, é uma proposta imobilista, porque o governo, nos últimos 20 anos, não tem sido capaz de fazer isso. Nós estamos propondo um modelo inovador, que gere condições para que isso ocorra. Agora, isso não é comungado por aqueles que acham que a Amazônia deveria ser um Jardim Botânico. Sabe? Não dá. (FSP 04/05)

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