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2005-05-04
Por Renan Antunes de Oliveira

O pescador João DAngerca foi um pioneiro da ecologia. Seu nome bem poderia estar no panteão dos grandes defensores do meio ambiente, embora numa categoria diferente daquela de Chico Mendes e da irmã Dorothy: despojado total, ele apenas consagrou sua vida a amar a natureza.

João morreu em 2002. Só agora começa a ser reverenciado pela forma como escolheu viver: um ermitão pobre, por 38 anos isolado na deserta Ilha dos Corais, no litoral catarinense, a 45 minutos da badalada praia da Pinheira.

Ele também escolheu a forma de morrer: se matou com um tiro de espingarda, depois que foi sacado da ilha pela Marinha de Guerra, proprietária do pedaço.

Seu gesto não foi nenhum sacrifício pensado, muito menos um gesto que pudesse ser usado no marketing do protesto (como foram, por exemplo, as imolações dos monges budistas no Vietnã contra aquela guerra).

Ele já tinha 80 anos, ainda lépido e faceiro, quando foi de afastado da ilha, em 2000, por um simples ofício assinado pela Capitania dos Portos. Quase analfabeto, não contestou a decisão e se mudou para o continente.

Agüentou ali dois anos. Tinha dias em que subia numa pedra e ficava olhando o mar na direção da ilha distante, ar triste, acabrunhado. Nos botecos, depois de alguns goles, resmungava um pouco. Queixava-se a velhos pescadores da falta de sua ilha. Fazia planos de voltar. Mas foi definhando, definhando, sem protestar, até o dia em que se deu um tiro no coração.

— Ele agia como se a ilha fosse dele, se sentia dono dela, conta o filho Domingos – ele é caminhoneiro, quebrando a tradição de seus ancestrais açorianos de viver do mar.
— Seu João não era dono de nada, a Ilha dos Corais é propriedade da Marinha, diz o capitão dos Portos Antônio Carlos Frade Carneiro.
E o homem João?
— Nunca concordamos com a permanência dele lá, o lugar serve apenas para abrigar um farol auxiliar de navegação, responde o militar, imperturbável.

Estão certos o capitão e também o ermitão. O povo sabe que a ilha dos Corais é da Marinha, mas muitos dos antigos ainda dizem a ilha do João DAngerca, assim como o estádio Mário Filho é o Maracanã.

João Manoel Borges era seu nome. O DAngerca é a maneira errada como os manezinhos dizem Angélica, a mãe dele. Assim o João da Angélica adquiriu um sobrenome afrancesado, ar fino. Nada, ele era da estirpe mané, nobreza de beira de praia, descendente dos colonizadores.

A ilha que ele ocupou é um pedaço estéril de costão, sem praia, vegetação alimentada pelas chuvas. Uma caminhada de 40 minutos cruza toda. O costão de corais brancos é rico em peixes e atrai mergulhadores. A Marinha proíbe até barcos pequenos de se aproximarem, devido ao risco das pedras. O lugar é parte do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. Duas vezes por ano um marinheiro vai lá botar combustível no farol, o único sinal do poder público.

João ocupou a ilha em 1964. — Ele foi pra lá quando a mamãe morreu, conta a filha Roseli. O drama: com três filhos pequenos, a mulher morre no parto do quarto. Enlouquecido pela dor, o homem deixa o bebê com parentes e vai passar alguns dias sozinho. Gosta, leva os outros filhos e não volta mais. A vila de pescadores da Pinheira, hoje um reduto de surfistas bronzeados e onde a maior celebridade é o modelo e pousadeiro Paulo Zulu, pensou que o homem tinha pirado. Baixinho, enrugado pelo sol, vestido quase sempre em farrapos, eternamente de chinelos, ele não deu bola pra ninguém e se manteve firme na decisão.

João ergueu um portão na entrada da ilha, na nesga de areia que permite a atracação de baleeiras. Construiu uma casinha, plantou uma horta de feijão e melancia, levou alguns cabritos pra leite, pescou para alimentar os filhos. Sua rotina era simples: acordar com o sol, capinar, pescar, fazer redes e pequenos trabalhos em palha, dormir cedo – mulher, nunca mais.

Depois dos 75, quando a energia já não era mais a mesma, ele fazia visitas ocasionais ao continente para comprar mantimentos. Dizem que jamais ficava mais do que o necessário para ir à vendinha, mas deve ser um mito. Até ao médico ele foi, e considerando a demora do SUS para uma consulta...

A casa tinha o mínimo de conforto. Ele usava latas pra esquentar água, em fogão a lenha. Neca de banheiro. A turma fazia como o Fortunato, aquele que usa o mato. Anos depois os filhos reclamaram da vida que levavam. Roseli, quando fez 18, conseguiu fugir, nunca mais voltou. Os outros também se mandaram, queixando-se que não puderam estudar.

Hippies e turistas que passaram pela ilha por décadas o retratam como um brilhante contador de histórias ao pé das fogueiras. Era o anfitrião ideal. Ajudava os chegantes a ancorar seus barcos, indicava os melhores points pras barracas, trocava serviços por comida. Era afável e hospitaleiro, mas zelava pela limpeza como um cão de guarda - fazia os sugismundos levarem o lixo pro continente.

O ermitão também cobrava uma pequena taxa por visitante, dinheiro que usava para comprar pequenos confortos na terra firme. O comerciante Ênio Lemos, que rolou por lá nos anos 80, calcula que se fosse hoje seria um real por pessoa: — Não era ganancioso, a gente até dava mais do que ele pedia.

O velho pescador era dado ao trago. Inventou uma beberagem de raízes e mel, acrescentando cachaça ou, de preferência, Campari, trazidos por turistas. A receita é desconhecida, mas quem bebeu diz que provocava vertigens. Ninguém sabe quando foi que a popularidade do velhinho começou a incomodar a Marinha de Guerra, nem qual foi o almirante que decidiu retomar aquela rocha dele. É certo que nos anos 90 alguém pediu sua saída.

Depois que ele se foi a polícia desmanchou o barraco. Alguns cabritos foram caçados e, dizem na Pinheira, acabaram no espeto das otoridades caçantes. O portão virou lenha. Sem o velhinho para auxiliar na atracação, escassearam os navegantes – tudo agora na paz de cemitério.
Uma das últimas pessoas na ilha conta que a única coisa que sobrou da passagem do homem foi uma pequena cruz de tijolos, também obra dele.
Talvez João DAngerca tenha vencido: a cruz deve ser para dizer que ele estará para sempre na sua ilha. Entre o mar e o céu.

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