Artigo; Licitação Pública Sustentável: qualificar para diferenciar
2005-04-27
Publicado originalmente no Boletim Eletrônico do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (abril de 2005).
Estimativas recentes demonstram que compras e contratações governamentais representam cerca de 10% do produto interno brasileiro e 20%, em média, do produto interno dos países industrializados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Estes números indicam que o setor público, por meio de seu poder de compra, pode - e deve - ser um importante indutor de práticas sustentáveis na sociedade. No entanto, enquanto na última década os países da OCDE vêm adotando crescentemente normas e práticas de licitação sustentável, no Brasil, este tema vem sendo incorporado apenas timidamente às práticas governamentais.
Um dos maiores argumentos contra a adoção destas práticas no Brasil é encontrado na própria Lei 8.666/93 que trata de normas gerais sobre licitações e contratos administrativos, cuja leitura superficial estabelece preço mínimo como critério preponderante e portanto, funciona como barreira à incorporação de sustentabilidade nas compras e contratações públicas.
Para a dra. Silvia Nascimento, Procuradora-Chefe da Secretaria de Estado do Meio Ambiente de São Paulo, especialista em licitações públicas e em Direito Ambiental, existem fundamentos legais suficientes para inspirar iniciativas de licitação sustentável no país. Segundo ela, o que falta é disseminar esta informação entre aqueles responsáveis pelas compras e contratações públicas, assim como a ousadia destes em testar essa nova prática.
Dentre estes fundamentos, destacam-se preceitos da Constituição Federal, estabelecendo que a ordem econômica deve ser baseada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o objetivo de assegurar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social. A Constituição estabelece ainda que a contratação de obras, serviços, compras e alienações, mediante licitação pública, deve assegurar igualdade de condições entre todos os licitantes. O sistema de preços relativos vigente na economia brasileira não dá conta dos subsídios sociais e ambientais que empresas usufruem lançando à sociedade e ao meio ambiente externalidades de seus processos e produtos ou serviços. O critério de preços mínimos trata iguais de maneira desigual. Cabe ao administrador público estabelecer critérios de sustentabilidade nas compras e contratações públicas que melhor qualifiquem e diferenciem produtos e serviços, para que estas distorções sejam corrigidas e igualdade de condições sejam oferecidas.
A legislação infra-constitucional também nos lembra que a busca da proposta mais vantajosa deve estar em conformidade com os princípios que regem a administração pública, entre eles a defesa do meio ambiente e a redução das desigualdades regionais e sociais. A Lei 8.666 de 1993, proíbe restrições ao caráter competitivo que sejam impertinentes ou irrelevantes para o específico objeto do contrato. Nada indica que a defesa do meio ambiente e a redução de desigualdades sejam condições impertinentes ou irrelevantes.
Além disso, a interpretação da lei de licitações públicas deve ser coerente com o restante das normas do ordenamento jurídico nacional, em particular, com os preceitos da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) que orienta o Estado na gestão do interesse público em matéria de meio ambiente. Referida lei estabelece dentre seus objetivos, que é preciso compatibilizar o desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente, fixar critérios e padrões de qualidade ambiental e de normas relativas ao uso e manejo dos recursos ambientais, desenvolver pesquisas e tecnologias para uso racional dos recursos ambientais, difundir tecnologias de manejo do meio ambiente e formar uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico, promover a preservação e restauração dos recursos ambientais. Portanto, as licitações públicas deveriam estabelecer práticas de forma a respeitar esses preceitos.
A Procuradora lembra que algumas iniciativas do Estado de São Paulo já incorporam preceitos de ordem ambiental, social ou ética na licitação pública e nunca foram questionadas pelo poder judiciário. Entre elas destacam-se:
* Proibição à Administração de contratar serviços e obras com empresas que, na qualidade de empregador tenham tido diretor, gerente ou empregado condenado por crime ou contravenção em razão da prática de atos de preconceito de raça, cor, sexo, estado civil, práticas atentatórias à maternidade ou qualquer discriminação à permanência no emprego (art. 1º, Lei estadual nº10.218, de 12.02.99).
* Proibição à Administração Direta e Indireta de adquirir produtos ou equipamentos contendo substâncias que destroem a Camada de Ozônio- SDOs, controladas pelo Protocolo de Montreal e discriminadas no Anexo I (Decreto nº41.629, de 10.03.97)
* Imposição de aquisição para a frota do Grupo Especial do estado de veículos movidos a álcool, admitida, em caráter excepcional, devidamente justificado, a aquisição de veículos na versão bicombustível, ou movidos a gasolina, quando não houver modelos na mesma classificação, movidos a álcool (substituição de chumbo tetraetila por álcool anidro (Decreto nº42.836, de 02.02.98, com redação alterada pelo Decreto nº48.092, de 18.09.03)
* Obrigação da aquisição pela Administração Pública Direta, Autárquica e Fundacional de lâmpadas de alto rendimento, com o menor teor de mercúrio dentre as disponíveis no mercado (base em laudos técnicos) e de cabos e fios de alta eficiência elétrica e baixo teor de chumbo e policloreto de vinila - PVC (Decreto nº45.643, de 26.01.01)
* Obrigação de adoção de medidas de redução de consumo e racionalização de água no âmbito da Administração Pública Direta e Indireta, que inclui a obrigatoriedade de emprego de tecnologia que possibilite redução e uso racional da água potável e da aquisição de novos equipamentos e metais hidráulicos/sanitários economizadores, que deverão apresentar o melhor desempenho sob o ponto de vista de eficiência de consumo de água potável (Decreto No. 48.138, de 07.10.2003)
Silvia Nascimento destacou ainda a falta de aplicação de uma sanção prevista na Lei de Crimes Ambientais pela administração pública, que possibilitaria a eliminação da participação em concorrências públicas de atores em descumprimento da legislação ambiental, condição que parece óbvia, contudo pouco utilizada na prática. O preceito a ser aplicado é aquele estabelecido pela Lei Federal nº9.605, de 12.02.1998, que estabelece a possibilidade de aplicação de sanção restritiva de direitos, como a proibição de contratar com a Administração Pública, pelo período de até 3 (três) anos ( Art.72, § 8º, V).
A procuradora concluiu sua apresentação destacando a viabilidade da promoção de iniciativas de licitação sustentável em face do ordenamento jurídico brasileiro, e da importância de implantação de uma política de consumo sustentável pela Administração Pública, destacando como instrumentos principais:
* A aplicação, ao poluidor, da sanção administrativa ambiental de impedimento para contratar com a Administração Pública por até 3 anos
* A especificação do objeto na licitação, com requisitos voltados à conservação e à preservação do meio ambiente
Hoje são depositadas grandes esperanças para o avanço desse temática e práticas de licitação pública sustentável no Grupo de Trabalho instituído pelo Governador Geraldo Alckmin, através da Resolução da Casa Civil de No. 53, de 30 de junho de 2004, que poderá servir de importante exemplo para todo o país e no nível internacional. Referido grupo foi instituído com o objetivo de elaborar estudos e prestar assessoria técnica e jurídica na área ambiental e introduzir critérios de ordem ambiental compatíveis com as políticas socioambientais do Governo do Estado, voltados a fomentar a adoção de sustentabilidade ambiental para contratações de obras, serviços e compras.