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2005-03-23
Funcionário da Vivendi há décadas, o sindicalista Jean-Luc Touly sacudiu o cenário empresarial francês ao, em 1998, expor, juntamente ao recém-fundado Attac, uma fraude bilionária envolvendo a transnacional. Uma cruzada que, contra todas as probabilidades, fez com que caísse em desgraça o então presidente da companhia, Jean-Marie Messier, afundando a empresa em caos administrativo e num turbilhão de investigações públicas. No Brasil a convite do Governo do Paraná, o autor de Les Véritès Inavouables de Vivendi (As Verdades Inconfessáveis da Vivendi) conversou com Planeta Porto Alegre sobre os esqueletos no armário da maior corporação mundial da água.

Criada na França há 150 anos, sob o nome Compagnie Genérále des Eaux, a Veolia Environment (conhecida, até 2003, como Vivendi) é a maior prestadora de serviços hídricos do mundo. Dona de um império construído ao longo de mais de um século de fusões e negócios suspeitos, ela serve hoje a mais de 110 milhões de consumidores, espalhados por 84 países. Touly começou a trabalhar na companhia em 1976, encarregado dos relatórios técnicos e financeiros das regiões ao redor de Paris. Situação que o deixou cara a cara com o festim de corrupção e superfaturamento promovido pela empresa. Até os anos 50, a Veolia Environment detinha, juntamente à Suez, não mais que um terço da gestão da água dos municípios franceses. Hoje, Touly calcula que uma recorrente política de superfaturamento, corrupção e aliciamento de sindicalistas, ativistas e gente do setor público tenha elevado essa cifra aos 80%, com ampla participação no mercado mundial. Segundo o sindicalista, a coisa funciona da seguinte maneira: essas empresas (como Suez e Veolia/Vivendi) assinavam contratos com o governo (francês) por até 40 anos, ao que seguia um adiantamento em dinheiro, um empréstimo de longo prazo e com juros bem altos para investimentos. Como esse crédito é dado sem qualquer auditoria, a quantia é gasta não apenas em obras de infra-estrutura, mas também em quaisquer outras coisas que o governo ache de seu interesse. O reembolso, claro, é repassado para a conta dos consumidores, e o contribuinte acaba pagando empréstimo e juros.

Chamada direito de entrada, e extinta por François Miterrand em 1993, essa jogada permitia que políticos dessem ao público uma impressão de boa situação financeira, com obras em andamento. Logicamente, tratando-se de um empréstimo de longo prazo, seu pagamento acabava no colo de seus sucessores, o que colocava o Estado na bizarra situação de credor eterno da Veolia/Vivendi e da Suez. Não à toa, as duas estão entre as três maiores corporações mundiais da água; a terceira, alemã, é a RWE. A proibição do direito de entrada, porém, parece ter atiçado a criatividade das empresas na hora de burlar a nova legislação. - Foram encontradas maneiras de garantir que as companhias continuassem faturando em cima do Estado- explica Touly.

Os estragos da Veolia/Vivendi ao bem-estar financeiro da população não são restritos à França. Boa parte do dinheiro embolsado pela companhia vem do superfaturamento no salário de pessoal especializado espalhado pela corporação ao redor do mundo. Apesar do gasto com a administração de empregados variar bastante dependendo de cidade, estado ou país, a empresa prefere ignorar esta matemática, jogando para o alto o preço que cobra dos governos pela manutenção de seu pessoal. A diferença, logicamente, é embolsada pela transnacional.

No esforço de canibalizar o mercado internacional, vale mesmo, afirma Touly, o aliciamento de ONGs e organismos humanitários que, financiados pela Veolia e outras companhias, preparam o terreno para novas investidas. Em situações emergenciais, por exemplo, as transnacionais da água vão a reboque de instituições de auxílio humanitário. Nos países de infra-estrutura debilitada, correm a acudir os especialistas do corpo técnico das empresas, que assessoram o governo na construção de sistemas de águas. Uma solução que, via de regra, passa pelas alternativas oferecidas pela própria companhia, gentilmente financiadas pelo Banco Mundial. - Não à toa,o presidente do Conselho Mundial das Águas é presidente da Sociedade das Águas de Marselha, uma subsidiária cuja propriedade é dividida em 50% para a Suez, 50% para a Veolia- lembra o ativista.

Estas mesmas instituições humanitárias são utilizadas como pontas-de-lança na conquista de mercados em que os consumidores não tenham o costume de pagar pelo uso da água. Nos países com boa infra-estrutura, como Brasil, Itália, Suíça e Canadá, o jogo é um pouco mais sofisticado: as transnacionais tentam seduzir com a venda de expertise técnica e administrativa. O que, lembra Touly, sempre descamba para a cantilena da privatização ou, mais recentemente, das Parcerias Público Privadas. A estratégia, neste caso, é de comer pela beiradas, de controle da infra-estrutura pública a partir do investimento em empresas pequenas e sistemas de tratamento periféricos. -Nesses países a Veolia não gosta de aparecer, e envia, muitas vezes, as suas subsidiárias- afirma Touly.

O grande golpe da Vivendi, porém, é o que colocou Touly na mira da empresa. Dados trazidos a público pelo sindicalista no fim do século passado revelaram ao grande público uma fraude de cerca de 5 bilhões de euros contra o governo francês. A sujeira encontrada por Touly jogou em desgraça o então todo-poderoso da transnacional, Jean-Marie Messier, que hoje recorre de uma milionária multa estipulada pelo governo da França por crime contra o sistema financeiro. Esse dinheiro seria do superfaturamento de cerca de oito mil contratos de manutenção de sistemas hídricos na região parisiense. Preocupado com a possibilidade de ter de repassar o dinheiro ao governo caso o esquema fosse descoberto, Messier teria jogado o saque num labirinto de bancos e financeiras espalhados ao redor do mundo, tentando apagar seu rastro. Não foi suficiente. Investigações oficiais desvendaram a maracutaia, revelando que esse o dinheiro desviado foi, na verdade, o capital empregado numa das grandes fusões desta virada de século -- a compra do Universal Studios pela então Vivendi. Mesmo com a faca e o queijo na mão, não foi fácil, para Touly, convencer o governo francês a investigar o caso – quando apresentou as provas, apenas sete dos 577 deputados do país apoiaram a criação da CPI que investiga o caso. E não é para menos. Não são poucos os representantes da política partidária francesa presentes nos conselhos das corporações da água. -Quando estes políticos perdem a eleição, eles voltam às empresas. com salários que variam entre 250 mil e 1 milhão de euros - relata o sindicalista.

Em meados de 2004, a empresa contra-atacou, e processou Touly por calúnia pelo livro Les véritès inavouables de Vivendi (As Verdades Inconfessáveis da Vivendi), radiografia das sujeiras da companhia o redor do mundo escrita em parceria com o repórter investigativo Roger Lenglet. O tiro da transnacional, porém, acabou saindo pela culatra – acossada pela opinião pública, a empresa acabou num acordo amigável com o sindicalista. O que deixou Touly numa situação, no mínimo, estranha: por conta da estabilidade empregatícia garantida aos sindicalistas franceses, ele continua empregado da companhia, que, zelosa, nega-se a liberá-lo – afinal, fazê-lo seria não mais que passar um recibo de culpa. A prudência aconselha que se mantenha os amigos próximos, e os inimigos mais próximos ainda. Touly abre um livreto, título Le Mouvement Altermondialiste et lEau -- Quelles Réponses (algo como O Movimento Altermundialista e a Água – Quais as Respostas). Documento de acesso restrito apenas ao alto escalão da Veolia Environment ao redor do mundo, é uma espécie de lista de grupos e indivíduos ativos na resistência à privatização da água. (Eco Agência, 22/03)

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