Tecnologia muda cara da grilagem no PA
2005-03-15
Os métodos para assegurar ilegalmente a posse da terra em uma das últimas fronteiras da Amazônia ganharam uma face assustadoramente tecnológica. Grileiros e madeireiras ilegais mapeiam as áreas-alvo com a ajuda de imagens de satélite e aparelhos de GPS, limpam áreas com milhares de hectares em questão de poucos dias e escolhem épocas diferentes das tradicionais para desmatar.
Por outro lado, a grilagem de última geração na Terra do Meio (PA), descrita num relatório do Ministério da Ciência e Tecnologia, obtido pela Folha, tem pelo menos um ponto importante em comum com o que sempre aconteceu em fronteiras agrícolas da Amazônia. Para quem avança sobre terras públicas e reservas, o interesse é assegurar a posse do máximo de terra possível - e só depois tratar de dar a ela alguma utilidade econômica.
– Nós queríamos caracterizar o que estava acontecendo lá na Terra do Meio, quais eram os processos de apropriação da terra no Pará - diz Gilberto Câmara, pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e vice-coordenador do Geoma (Rede Temática de Pesquisa em Modelagem Ambiental da Amazônia). – Descobrimos que o que move tudo é a busca pelo direito de propriedade sobre terras públicas, afirma o cientista. O relatório do Geoma sobre a Terra do Meio e seus arredores, feito com base numa missão de campo do ano passado, mostra como e onde esse processo tem avançado e algumas possíveis tendências.
Processo acelerado
Segundo Peter Mann de Toledo, coordenador do Geoma e diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi, a voracidade desse processo aumentou nos últimos três anos. – O conhecimento da tecnologia de satélite por parte dos grileiros acaba tornando isso mais rápido, afirma ele. – É claro que eles têm acesso a tais dados, até pela política de transparência do governo, que os têm colocado à disposição do público, diz Câmara.
– Eles são muito bem equipados, às vezes mais modernos que a gente, ironiza Philip Fearnside, ecólogo do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), outro membro da equipe do relatório. Os programas de informação geográfica por satélite permitem localizar áreas de interesse para a apropriação ilegal, verificar possíveis conflitos com reservas indígenas ou ambientais e escolher trechos de mata em terras pertencentes à União.
Depois, com a ajuda de aparelhos de GPS (sistema de posicionamento global, na sigla inglesa), fica fácil mapear e delimitar a área para o desmatamento. – Tudo isso ajuda a minimizar os custos de fazer a grilagem, diz Fearnside. O pesquisador recorda o caso de um madeireiro que chegou a Apuí, no Amazonas (fora da Terra do Meio, portanto) de olho numa área isolada de floresta. – Com o GPS, a filha dele viu que a área estava incluída numa reserva criada pelo Estado do Amazonas, e ele acabou desistindo.
Desnecessário dizer que o desfecho desse tipo de iniciativa nem sempre é tão animador. Outro trecho de mata completamente isolado, ao sul do rio Iriri, perdeu, em duas semanas, cerca de 6.200 hectares. Sugestivamente, conta Fearnside, o polígono desmatado ganhou o apelido de Revólver, por causa de seu formato. Seu surgimento foi acompanhado pelo sistema Deter (Detecção do Desmatamento em Tempo Real).
– O que nos pareceu estranho nesse caso foi a rapidez e a distância -o fato de estar bem no meio da Terra do Meio, no meio do nada, diz Câmara. - É difícil imaginar por que alguém ia abrir uma clareira tão grande, a não ser que não soubesse que a gente ia pegar isso com o satélite. A lógica do desmatamento rápido de grandes áreas, facilitada pelo mapeamento eletrônico, é a de criar um fato consumado. Fica mais fácil conseguir a posse de uma suposta área de preservação que já perdeu boa parte da floresta.
A necessidade de escapar da vigilância também está mudando as épocas do ano escolhidas para grandes derrubadas, contam os pesquisadores. – Eles começam a fazer coisas fora do padrão, como desmatar na época das chuvas, e não na estiagem, afirma Toledo. Para quem olha de fora, a área continua verde e o processo pode prosseguir com facilidade.
Apesar de todas as mudanças, uma coisa continua igual ao que sempre aconteceu em outras fronteiras agrícolas do país. – Por enquanto, você vê que a exploração madeireira, por exemplo, é mínima, diz Toledo. – O interesse deles é conquistar terras o mais rapidamente possível e só depois utilizá-las economicamente. Esse é o mesmo padrão que já foi dominante em Rondônia, em Mato Grosso ou no Acre.
Invasão de terras conecta frentes
Um dos fatores do avanço do desmatamento, segundo o relatório, é a maneira como a grilagem cria conectividades fortes entre as diferentes frentes de ocupação amazônicas. O texto já considera, por exemplo, o surgimento de uma conexão física entre São Félix do Xingu e Novo Progresso -duas frentes ativas de desmatamento que ainda estão separadas.
Um dos fatores que poderiam levar a essa união é a abertura de estradas particulares, prática comum entre madeireiros e grileiros da região. – Num cenário de governança, o governo implementa seu plano de áreas de proteção e consegue impedir novas estradas. No de não-governança, a conexão Novo Progresso-São Félix seria estabelecida nos próximos três anos ou até antes, criando um fato consumado de posse numa região até hoje largamente intocada, diz Gilberto Câmara.
– No caso do desmatamento que parte da BR-163 e de São Félix, é como se fossem dois exércitos fazendo um movimento de tenaz sobre um só inimigo, que é a floresta, compara o pesquisador.
O acompanhamento da devastação via satélite pode ser a faceta mais visível do trabalho do Geoma, mas os pesquisadores querem ir além do que as imagens mostram. Integrando esses dados com informações ambientais e socioeconômicas, a idéia é prever para onde o desmatamento deve caminhar -e agir antes que ele se torne fato consumado.
Alternativas
– Na verdade, o termo que eu usaria é prospecção, diz Câmara. – Por exemplo, em 2015, num cenário com governança forte ou governança fraca, como esperaríamos que o desmatamento evoluísse?
Uma dessas propostas de gerenciamento para impedir que a situação se deteriore mais é o macrozoneamento ecológico econômico do governo estadual do Pará. Ela consolida as fronteiras já abertas como passíveis de exploração econômica, enquanto reserva 65% do Estado para a proteção ambiental.
Outra, do Ministério do Meio Ambiente, propõe a formação de um mosaico de unidades de conservação. Na avaliação do relatório, ambas (...) propõem usos restritivos que não são compatíveis com as atividades econômicas desenvolvidas na região. O texto pede um refinamento das propostas, levando em consideração os colonos fixados ali.
Sistema enxerga área desmatada em tempo real
É graças ao refinamento das técnicas de imageamento por satélite que os cientistas têm conseguido acompanhar o avanço do desmatamento amazônico em velocidades próximas do tempo real. Entre esses avanços de sensoriamento, destaca-se o sistema Deter, que já pode ser consultado publicamente pela internet.
Segundo o Inpe, a função do Deter não é calcular o tamanho das áreas desmatadas, tarefa que já cabe ao projeto Prodes, que faz estimativas anuais de quanto a floresta encolheu. A alta freqüência de observações do novo sistema permite que ele vença as limitações da cobertura de nuvens para enxergar o que acontece no solo. Sensores em três satélites o alimentam com dados: o Modis, a bordo do Acqua e do Terra (ambos da Nasa), e o WFI, carregado pelo satélite sino-brasileiro Cbers-2.
Para compensar a observação próxima do tempo real, a resolução do Deter não é das mais refinadas: seu primeiro sensor tem resolução de 250 metros, enquanto o outro está na faixa dos 260 metros. Por isso, a menor área na qual podem ser detectados desmatamentos recentes é de 25 hectares.
Estimativas
Dados preliminares do Deter, apresentados em dezembro pelo Ministério do Meio Ambiente, sugerem que o desmatamento acumulado na Amazônia durante o ano passado teria ficado entre 23,1 mil e 24,4 mil quilômetros quadrados.
Segundo o MMA, no entanto, a diferença de metodologia entre o novo sistema e o Prodes significa que ele não é adequado para fazer o cálculo de área desmatada, mas apenas para mostrar indícios de mudança.
O endereço eletrônico do Deter é www.obt.inpe.br/deter. É preciso se cadastrar gratuitamente para obter acesso às imagens. (FSP 14/03)