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2005-03-04
Santo Amaro da Purificação dorme sobre uma cama tóxica de chumbo. E esta herança deixada pela fábrica de processamento de minério Plumbum S.A., que cerrou as portas em 1993, tem colocado em risco não só os santamarenses como várias comunidades do recôncavo norte abastecidas pelo estuário do Rio Subaé, assim como a Baía de Todos os Santos. A cada serviço público em que é preciso revolver o solo, a exposição e o contato do material com o ar aumentam as chances de intoxicação, e reeditam o pesadelo que aprisionou toda uma cidade por 33 anos, marcando para sempre a vida do município. A denúncia, do professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, Fernando Carvalho, está baseada em diversas investigações que demonstram a presença maciça de metais pesados no organismo de seres vivos e nos sedimentos da baía.

Os dois principais destinos de todo o lixo industrial produzido pela Plumbum foram o pátio a céu aberto da indústria e, pasmem, as ruas de Santo Amaro. Grandes quantidades de escória, com 2% a 3% de chumbo em sua composição, eram doadas à prefeitura, que utilizava o material como base de pavimentação. Muitos moradores também assentavam seus quintais ou fachadas com escória. O resultado é que, além dos ex-trabalhadores expostos à atividade, que tiveram seqüelas e até hoje clamam por indenizações à saúde, o chumbo alcançou os que absolutamente nada tinham a ver com a história. Quantidades elevadas do metal foram encontradas no sangue de gente que nunca trabalhou na fábrica, mas que tinha escória na frente de casa. – Num estudo feito em crianças nos Estados Unidos, em 1995, o PbS (nível de chumbo no sangue) era de 3 µg/dL (microgramas por 100ml de sangue). Em Santo Amaro, esse número era apenas a diferença entre quem tem e quem não tem escória visível na porta de casa, revela o professor Fernando Carvalho.

A pesquisa, realizada em 1998 com 44 crianças da Rua Ruy Barbosa, em Santo Amaro, apontou variação de 15,5 a 18,7 µg/dL. O Departamento de Saúde americano (U.S. Departament of Health na Human Services) estabelece que as intervenções em crianças devem começar com níveis de PbS a partir de 15µg/dL. E segundo o pesquisador da Ufba, nem mesmo esse nível pode ser considerado seguro. – O chumbo não tem nenhuma ação biológica, e quanto mais se descobre sobre o chumbo, mais se confirma que o ideal é que sua presença seja zero no organismo, defende Fernando Carvalho. Insuficiência renal, anemia, déficit de Q.I. e diminuição da conduta nervosa: os sintomas clássicos de altas e médias concentrações de chumbo, entre moradores de Santo Amaro, são a prova de que o assunto é sério. E levando em conta que os efeitos do chumbo são mais graves em pessoas com risco de desnutrição, a prevalência torna-se ainda mais cruel.

Comissão vai discutir plano de ação
Purificação de Santo Amaro. O trocadilho dá nome ao programa criado em 2003 e capitaneado pela Secretaria de Ciência e Tecnologia do estado, que envolve outras dez secretarias e várias outras entidades, como o CRA, a prefeitura de Santo Amaro e a Associação das Vítimas de Contaminação por chumbo, cádmio, mercúrio e outros elementos químicos (Avicca). A idéia é buscar uma solução para a herança plúmbea da cidade de dona Canô. Em 3 janeiro deste ano, foi oficializada, por decreto, a comissão intersetorial criada para elaborar o plano de ação que será discutido com a comunidade.

Segundo o secretário executivo da comissão, Maurício Campos, o projeto tem foco principal no passivo ambiente, mas incluirá ações em saúde, em política institucional e socioculturais. Os trabalhos contam com alguns fóruns paralelos, além de uma base científica e o apoio de pesquisadores da Ufba. O plano de ação está previsto para ser apresentado no próximo dia 9 de março. – Estamos julgando algumas alternativas técnicas apresentadas por empresas, e outras da base científica. O encapsulamento é o primeiro foco de preocupação. Pode ser um reprocessamento, ou um novo encapsulamento. Vamos considerar tudo com muita calma, diz Campos.

Metal foi usado no calçamento
O prefeito João Melo, que assumiu o cargo pela segunda vez este ano, disse que sempre foi contra a utilização da escória na base do calçamento. – Fui prefeito entre 1993 e 1996, e nunca transportei um caminhão disso para pavimentar, garantiu. O tempo passa, o metal, que é altamente tóxico, continua alojado sob o solo de Santo Amaro, e nenhum órgão ou autoridade parece saber exatamente o que fazer para sanar o problema.

Essa falta de experiência com técnicas de remediação de locais contaminados por metais pesados é, segundo Carvalho, mundial. – Não se sabe, até hoje, que destino dar à escória - diz. Enquanto isso, segundo a Agência para as Substâncias Tóxicas e o Registro de Doenças dos Estados Unidos (ATSDR), as instalações da Plumbum representam Perigo urgente para a saúde pública (categoria A), o rio Subaé - sedimentos e entorno da Plumbum, Perigo para a saúde pública (categoria B).

Baía poluída - Estudos feitos em 1994 pela pesquisadora Tânia Tavares, do Laboratório de Química Ambiental do Instituto de Química da Ufba, concluíram que há contaminação por chumbo e cádmio em sedimentos e moluscos comestíveis do estuário do Subaé e ecossistema norte da Baía de Todos os Santos. A concentração dos metais é acima do normal em toda a parte norte da baía. Enquanto o limite aceitável de chumbo no sedimento fica entre 20 e 52 ppm (partes por milhão), alguns locais chegam a ter até 618 ppm. Nos sedimentos do mangue, foram encotradas 150 ppm de chumbo, quando o limite nesse escossistema é de 20 ppm. – O chumbo não desfaz, degenera, ou decompõe. Portanto, a possibilidade de que ainda esteja depositado no fundo da Baía é enorme, atesta o professor Fernando Carvalho.

Além dos dados de pesquisas como a da Drª Tânia Tavares, o CRA também constata que parte da escória foi escarreada para o Rio Subaé. – Evidentemente, se instalou na foz, porque o metal não tem mobilidade, sugere Francisco Brito. Já as concentrações de cádmio - outro metal tóxico - encontradas nos sedimentos foram normais. O elemento se transloca pelas correntes, o que leva seus efeitos por maiores distâncias. Moluscos, filtradores por natureza, apresentaram quatro vezes mais cádmio do que o limite de 1ppm aceitável.

Em 1999, um outro estudo indicou que as alterações cromossômicas em mulheres de 30 a 45 anos, residentes na Rua Ruy Barbosa, em Santo Amaro, foram 6,5%, contra 1,5% das mulheres-controle de Jequié, cidade do sudoeste do estado. Em 1991, no gado de pequenos criadores que pastava nas instalações da fábrica e bebia da água acumulada nos tanques de contenção, o nível médio de chumbo no sangue variou entre 7,4 e 71,4 µg/dL; entre os animais controle, variou de 0,8 a 3,7 µg/dL. O gado de Santo Amaro fornecia a carne e o leite para muitas famílias da cidade. E em algumas hortas a 500m da fundição, o limite de tolerância para a ingestão de chumbo seria excedido com o simples consumo de três folhas de couve, três folhas de hortelã graúdo, cinco folhas de alface ou dez quiabos.

Escória ficou exposta
Apesar de algumas ações em saúde pública terem diminuído a concentração do chumbo no sangue de crianças santamarenses na década de 80, outras permitiram que o problema gerasse novas preocupações. Depois de muito tempo exposta à ação da chuva e do vento, e ao acesso de animais em busca de pastagem, a escória do pátio da Plumbum foi encapsulada por determinação da Justiça, isto é, coberta por uma camada de terra. Isso praticamente encerrou a discussão sobre o destino do material, e fechou os olhos de muita gente para o que ainda se escondia debaixo das ruas da cidade. Ainda havia a escória alojada na base da pavimentação, e trazê-la à tona tornou-se corriqueiro em serviços na rede de abastecimento ou no calçamento. O próprio programa Bahia Azul, que iniciou o esgotamento sanitário, em Santo Amaro, em 1998, se deparou com o problema. – Nós só tivemos conhecimento da escória quando começamos a abrir as ruas, declara o diretor de operações da Embasa, Jessé Carvalho.

O pesquisador Fernando Carvalho mostra fotos das obras do Bahia Azul, que teriam revolvido e exposto enormes quantidades de escória em frente às casas. – Não vejo relação entre o serviço e o eventual aumento de contaminação, defende Jessé Carvalho. – A escória era e continua sendo espalhada pela chuva, levantada pelo movimento dos carros e ingerida por crianças que brincam no chão e levam a mão à boca, diz o professor. Numa outra fotografia, um caminhão despeja terra misturada com escória na beira da estrada para Cachoeira, área próxima a um manguezal. O diretor de operações da Embasa contesta a responsabilidade da empresa: – Recebemos alvará para as obras. Nem CRA, nem justiça, nem prefeitura, ninguém questionou ou nos orientou. Não tínhamos essa preocupação uma vez que nenhum órgão se pronunciou, explica. Jessé Carvalho disse não ter conhecimento sobre a desova de escória no mangue, mas que pode acontecer, porque às vezes o motorista não tem a noção do que está fazendo.

O assessor da diretoria de controle ambiental do Centro de Recursos Ambientais (CRA), Francisco Brito, confirma que a Plumbum considerava a escória como inerte, mas não soube responder sobre os laudos da empresa que atestavam a não-toxicidade do material, enviados ao órgão. Segundo Brito, ainda na década de 80, a indústria solicitou ampliação do espaço, que fora negada pelo CRA. Ele afirma que o CRA encaminhou à prefeitura, há apenas um ano e meio, um documento solicitando determinados cuidados pelas empresas contratadas para algum tipo de serviço de pavimentação e rede, quanto à disponibilização de material em vias públicas. – Não creio que tenha sido cumprido; acompanhei alguns trabalhos de manutenção, e não havia esse cuidado, colocou. (Correio da Bahia 03/03)

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