Vítimas do chumbo fazem passeata em Santo Amaro (BA)
2005-02-28
A capacidade de se revoltar é o que ainda move os santamarenses atingidos pela maior tragédia ambiental e social da história do município, em manifestação pelas ruas. A capacidade de acreditar que justiça ainda pode e vai ser feita é o que aponta, como destino da passeata, o fórum da cidade. E a capacidade de imaginar que a luta pela vida vale para todos é o que leva homens, mulheres e crianças vítimas da contaminação por chumbo e cádmio, a erguer faixas e vozes pelo direito à dignidade. Ex-trabalhadores da extinta Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac), familiares e moradores de Santo Amaro contaminados, marcharam ontem em protesto à demora das questões trabalhistas e pela exigência de reparações às mortes de ex-trabalhadores e aos danos causados à saúde de centenas de pessoas.
Quando Alexsandro Gomes da Silva tinha 7 meses de idade, os médicos descobriram que a concentração de chumbo em seu corpo era bastante superior ao limite estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Foi contaminado porque inalou o pó que vinha nas roupas do pai, ex-trabalhador da fábrica. – Ele urinava sangue puro, tinha falta de ar, lembra a mãe, Miralva Rosendo Gomes. Alexsandro conviveu com as seqüelas da ingestão do chumbo durante seus 20 anos, e morreu em 2000. A irmã, cujos exames apontaram excesso de chumbo no sangue aos 8 anos de idade, hoje tem 29 anos e faz hemodiálise desde 1991. Além dos dois filhos contaminados, dona Miralva sofre vendo os netos Natan e Natali Mendes (8 e 7 anos) herdando a sina. Eles têm dores nos ossos e na cabeça e apresentaram dificuldade de aprendizagem. A presença do elemento tóxico foi constatada através de um exame feito pela Universidade de São Paulo (USP), que identificou contaminação em 560 crianças.
– Eu tenho dor e coceira nos olhos, e dor nos joelhos, queixa-se Érica Ribeiro, de 12 anos, que segundo a mãe Edna Conceição, já apresentou fraqueza, dores nas articulações, atrofia muscular e até crises de paralisia. – Ela toma ácido fólico, conta Edna. Natan, Natali e Érica são exemplos de uma geração que sente na pele os efeitos de um ambiente insalubre e transformado em impróprio para uma vida saudável. – A Coordenação Geral de Vigilância Sanitária do governo federal constatou que Santo Amaro é a área de maior urgência do país em gravidade de resíduos sólidos, revela o pesquisador do Instituto de Química da Ufba, Fernando Carvalho. Várias pesquisas feitas por institutos contratados pelo governo federal, desde 1980, atestam, segundo Carvalho, níveis altíssimos de chumbo em crianças, na população adulta, na água dos rios, nos manguezais e até nos mariscos, fonte de renda de muita gente. – Mulheres na faixa reprodutiva e rebanhos de bovinos apresentaram, inclusive, alterações cromossômicas. O ambiente está condenado, a contaminação é generalizada e muito séria, alerta.
De 945 ex-trabalhadores que entraram com ações individuais na justiça tentando garantir indenizações, 30 acabaram fazendo acordo e receberam valores considerados irrisórios pela Associação das vítimas da contaminação por chumbo, cádmio, mercúrio e outros elementos químicos (Avicca). É o caso de José Germano de Albuquerque, de 61 anos, que trabalhou entre 1982 e 1993 na fábrica, e recebeu R$7.200 divididos em 12 vezes. – Não acredito mais na justiça, resume, enquanto mostra o braço e a perna esquerdos, que estão encurtando. A esposa, Dora Maurício, sente fortes dores nos ossos: contaminou-se lavando as roupas do marido.
A promotora Adriana Imbassahy, que recebeu as reivindicações das mãos do movimento, disse que as únicas duas ações civis públicas do Ministério Público Estadual em andamento têm objeto muito específico, referem-se à responsabilidade da empresa pelo destino final da escória de chumbo, e que só uma ação do MP Federal, de 2002, apura o caso de forma mais ampla, apontando responsabilidades por danos sociais e ambientais. – É um problema macro, que agora será objeto da instauração de um novo inquérito no MP Estadual, promete. Ela se diz indignada com a postura da empresa, e parabeniza a iniciativa da manifestação. – Eles estavam muito quietos. Fiquei feliz, eles não podem perder a capacidade de se indignar, diz.
Empresa operou por 30 anos
A Cobrac operou por mais de 30 anos no município. Fundada com o nome de Penaroi, por franceses, recebeu em 1987 a entrada de capital nacional (mudando o nome para Cobrap e para as mãos do grupo Trevo, do Paraná), e cerrou as portas como Plumbum, em 1993. Mudou de razão social, mas não de prática. Faturou perto de U$450 milhões, segundo o Instituto de Desenvolvimento Ambiental(IDA), órgão ligado ao governo federal. Lucro que depositou como troco, sequelas mortais nas vidas de Santo Amaro e de outros municípios da região. Segundo a Avicca, 38 ex-trabalhadores já morreram em conseqüência da intoxicação, e milhares de pessoas podem ter excesso de chumbo no organismo.
A empresa que extraía o minério de chumbo em Boquira, na Chapada Diamantina, e o processava em barras de ligas metálicas na fábrica de Santo Amaro transformou em prisioneiros do medo os funcionários e suas famílias, e todos aqueles que tiveram a infeliz coincidência de morar próximos à sua sede. Em três décadas, foram produzidas 490 mil toneladas de resíduo tóxico, a chamada escória. Cerca de 350 mil toneladas ainda estão nos pátios da fábrica. O restante, quase 150 mil toneladas, foram despejadas no ambiente. – Não é só Santo Amaro. A contaminação se espalhou através do Rio Subaé, e chegou até a Baía de Todos os Santos.
O assunto é tão grave que mereceu a instalação, no dia 5 de janeiro, de uma comissão intersetorial pelo governador Paulo Souto. (Correio da Bahia 25/2)