Cientista-chefe do Banco Mundial avisa que não há tempo a perder para evitar as conseqüências do efeito estufa
2005-02-16
Todos os dias, no posto de cientista-chefe do Banco Mundial, o químico Robert Watson luta contra um inimigo insidioso: o lançamento na atmosfera de milhões de toneladas de um coquetel dos chamados gases estufa - gás carbônico, metano e aerossóis, entre outros vilões. Cerca de um quarto de todo esse lixo, que é responsável pelo aquecimento global, é despejado no ar pelos Estados Unidos, país que Watson, nascido na Grã-Bretanha, adotou como pátria há mais de 20 anos. Em 2001, o governo de George W. Bush retirou o apoio dos EUA ao chamado Protocolo de Kyoto, um acordo que hoje reúne 160 países, entre os quais os principais poluidores globais, como a União Européia, a Rússia e a China, além do Brasil, que aderiu ao tratado em 1997, ratificando-o em 2002. O governo Bush opõe-se aos critérios populacionais adotados pelo tratado para medir a emissão de gases de cada país. Para se justificar, os EUA têm dito também que existem incertezas científicas sobre as causas do aquecimento global. Mas no Banco Mundial, além de consolidar evidências científicas que ligam o aquecimento global à emissão de gases estufa, Watson é um ativo porta-voz da instituição sobre os riscos iminentes que rondam o planeta no século XXI. Um dos arquitetos do protocolo, ele falou a ÉPOCA sobre o que governos e empresas devem fazer antes que seja tarde.
ÉPOCA - Nas últimas semanas, eventos climáticos extremos como tornados têm castigado a Região Sul do Brasil, enchentes e deslizamentos de lama varrem a Califórnia e o Alasca apresenta um inverno bastante ameno. Isso tudo é conseqüência do aquecimento global?
Robert Watson - A resposta honesta para sua pergunta é que não posso dizer com certeza que cada um desses eventos está diretamente ligado ao aquecimento global, em função da grande variabilidade do clima. Mas temos evidências científicas de que a maior parte do aquecimento ocorrido nos últimos 50 anos é causada pelos humanos. A emissão de gás carbônico, por exemplo, cresceu cerca de 30% desde o início da Revolução Industrial, com a queima de combustíveis fósseis e o desmatamento nos trópicos. A Ciência tem duas ferramentas para entender o clima: a observação e o que chamamos de modelos, simulações feitas em computador. E os modelos mostram que, no caso do aquecimento no Alasca, esse é exatamente o tipo de evento que deverá se tornar cada vez mais freqüente nos próximos anos. E, num mundo mais aquecido, devemos esperar mais enchentes, mais secas e mais ondas de calor. O único desses eventos que não podemos ligar ao aquecimento global são os tornados. Os tornados são pequenos - com uma largura de dezenas de metros - e duram poucas horas. Os grandes modelos climáticos não conseguem enxergar dentro deles.
ÉPOCA - O que acontecerá com a temperatura e as chuvas globalmente e no Brasil?
Watson - Estamos prevendo que, no próximo século, a Terra vai se aquecer entre 1,5 e 5,8 graus Celsius. E as terras agricultáveis do planeta, como na América do Sul, se aquecerão mais que a média global. O Brasil deverá se aquecer entre 2 e 8 graus Celsius. A principal mudança no Brasil será na precipitação, com ciclones e chuvas cada vez mais pesadas, causando mais enchentes em áreas úmidas. Temos um modelo aqui no Banco Mundial que prevê que, se a Terra se aquecer a uma média de 3 graus por volta de 2085, a maior parte da Amazônia se aquecerá entre 3 e 4 graus. Esperamos também uma intensificação das secas em áreas como o Nordeste brasileiro.
ÉPOCA - E qual seria o impacto sobre o meio ambiente?
Watson - O aquecimento é uma ameaça clara para os sistemas ecológicos de alta latitude, no Ártico e na Antártida. Em função do derretimento nas calotas polares, espécies terrestres situadas em ilhas ou no topo de montanhas dessas regiões não terão para onde ir. Outro tipo de ecossistema bastante ameaçado são os recifes de corais. Mas não temos uma idéia precisa sobre o que aconteceria com florestas tropicais como as brasileiras. Isso seria determinado pela mudança na temperatura e nas chuvas.
ÉPOCA - E de que forma o aquecimento afetaria os humanos?
Watson - De início, o aumento do nível do mar, calculado entre 8 e 88 centímetros, afetaria todas as populações costeiras, desabrigando milhões de pessoas. Mas as populações mais vulneráveis seriam as mais pobres do planeta, as que habitam regiões áridas ou semi-áridas, como na África. E muitos países em desenvolvimento, principalmente os da África e os da América Latina, vão sofrer com a falta de água, além de com a piora na qualidade da água disponível. A deterioração da qualidade da água deve aumentar a incidência de doenças como malária, dengue e cólera. O aquecimento global também teria um efeito nutricional negativo nessas populações, em função da perda de produtividade agrícola nos trópicos e subtrópicos. É difícil quantificar essas perdas, mas o Banco Mundial estima que, se houver um aumento de 3 graus Celsius na temperatura global, os países em desenvolvimento perderiam entre 2% e 9% de seu Produto Interno Bruto. É uma perda tremenda, de pelo menos dezenas de bilhões de dólares.
ÉPOCA - Mas países de clima frio como a Rússia e o Canadá não ganhariam áreas agricultáveis com o aquecimento global?
Watson - É verdade, desde que essas áreas tenham bons solos e ganhem uma estação de crescimento mais longa em suas lavouras. Mas, por outro lado, há o risco de que o aquecimento traga pragas e doenças a esses lugares. Outro risco seria o aumento de incêndios em áreas florestais dessas regiões. Além disso, em função do derretimento de áreas permanentemente congeladas, essas regiões poderiam se tornar instáveis e impróprias à agricultura.
ÉPOCA - Durante várias décadas a comunidade internacional não se preveniu o suficiente contra o terrorismo. O mundo se mexerá a tempo de evitar um desastre como o de 11 de setembro na área ambiental?
Watson - Acredito que sim, mas para isso precisamos lidar com essa questão já. Se implementarmos as mudanças necessárias, começaremos a ver efeitos positivos no clima daqui a dez ou 50 anos, o que será muito bom. Em geral, a comunidade internacional e empresas multinacionais, como British Petroleum, Shell, DuPont e Ford, já reconhecem a importância da questão e estão trabalhando para diminuir as emissões de carbono.
As populações mais vulneráveis seriam as mais pobres do planeta, as que habitam regiões áridas ou semi-áridas. Muitos podem sofrer com a falta de água ou com a piora na qualidade da água disponível.
ÉPOCA - Por que o senhor defende o Protocolo de Kyoto, que é rejeitado pelo governo Bush?
Watson - O Protocolo de Kyoto, que será posto em prática a partir do dia 16 de fevereiro de 2005, é a melhor ferramenta que temos para lidar com o aquecimento global. Mas, para estabilizar as emissões de carbono, necessitamos que os principais emissores venham a aderir ao tratado - e até mesmo ir além dele. Precisamos dos EUA e, com níveis diferenciados de responsabilidade, precisamos também de grandes países em desenvolvimento, como China, Índia e Brasil. Todos os países terão de aprender a produzir e usar energia de uma maneira mais limpa e administrar melhor os sistemas agrícolas e florestais.
ÉPOCA - Mas é possível que o processo de aquecimento seja revertido sem o apoio dos Estados Unidos, que têm 5% da população mundial e são responsáveis por um quarto de todas as emissões?
Watson - Eu me surpreenderia se os Estados Unidos ratificassem o acordo no segundo mandato de Bush. Ele tem dito que o tratado é defeituoso, ä embora ele também tenha dito que os EUA reconhecem a importância da questão ambiental. No mês de julho, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, vai presidir a cúpula do G-8 (grupo dos países ricos) e dois temas serão discutidos: a África e a mudança climática. Temos de esperar para ver a reação de Bush. Em relação ao restante do mundo, acredito que seja imprescindível que as nações que apóiam o protocolo se mexam agressivamente para cumpri-lo. Assim, os EUA terão de fazer a sua parte para reduzir as emissões, seja aderindo ao protocolo, seja implementando uma política própria. Mas grandes Estados americanos, como Califórnia e Nova York, já reconhecem a gravidade da mudança climática e estão tentando reduzir suas emissões.
ÉPOCA - Mas por que, além da Casa Branca, o Congresso americano se opõe ao protocolo?
Watson - Não é por falta de informação científica. O programa americano de pesquisa climática é soberbo, é o maior e o melhor do mundo, e demonstra a ligação entre o aquecimento global e a emissão de gases estufa. Acredito que a oposição do governo americano decorre de várias razões - e, além dos republicanos, muitos democratas se opõem ao tratado. Eles alegam que existem incertezas científicas quanto ao impacto das emissões sobre o clima. Mas a Ciência, inclusive a produzida nos EUA, tem evidências de que o clima tem mudado e vai continuar mudando em função delas. Eles também dizem que a execução do protocolo seria muito cara e prejudicaria o crescimento econômico dos EUA. E dizem ainda que o protocolo é injusto, pois é menos rigoroso com países como a China, que também é um grande emissor. E, se a China ou a Índia não tiverem obrigações, grandes fábricas poluidoras vão se instalar lá, levando os EUA a perder indústrias importantes. Mas é preciso levar em conta que a China tem 1,3 bilhão de habitantes e suas emissões per capita são um oitavo das dos EUA. E as emissões per capita dos americanos são 20 vezes maiores que as dos indianos. Portanto, essa é também uma questão de justiça. Nós, do Banco Mundial, sabemos que o futuro do planeta depende da liderança dos países industrializados na questão ambiental. Eles são responsáveis por 80% de todas as emissões do planeta.
ÉPOCA - Como foi que a Alemanha reduziu a emissão de poluentes na atmosfera sem prejudicar seu crescimento econômico?
Watson - A unificação alemã permitiu o fechamento de indústrias do lado oriental que eram muito ineficientes e poluidoras. Essa foi uma maneira fácil de reduzir emissões no país todo sem muita mudança no parque industrial do lado ocidental. Recentemente, os britânicos também descobriram mais petróleo e gás no Mar do Norte e puderam substituir o carvão por esses dois combustíveis, que são mais limpos. Mas, por outro lado, tanto os governos quanto as empresas da Grã-Bretanha e da Alemanha têm ido além da simples redução de emissões, buscando oportunidades de negócios na geração e no uso mais limpo da energia. Eles buscam o lucro aí. Minha sugestão às grandes empresas do mundo inteiro vai na mesma linha: sigam o exemplo da DuPont e da Ford Motors.
ÉPOCA - Além do indiscutível ganho ambiental, que outras vantagens países como o Brasil teriam com o protocolo?
Watson - O protocolo cria o sistema internacional de carbono, que comercializará as cotas de redução de emissões de gases entre países industrializados e países em desenvolvimento. Ele prevê que, se países como o Brasil reduzirem suas emissões de carbono significativamente, poderiam transformá-las em créditos monetários, vendendo-os a países industrializados, onde a redução de emissões é bem mais cara. E, para o clima global, não importa em que lugar do planeta a redução aconteça. Em troca da redução de suas emissões, o Brasil ganharia acesso a tecnologias de última geração para produção e uso de energia, além de recursos para financiar programas de saúde e de educação. O Banco Mundial estima que nos próximos cinco ou sete anos o sistema internacional de carbono movimente de US$ 5 bilhões a US$ 15 bilhões.
ÉPOCA - O senhor teme que a expansão econômica da China ameace o planeta?
Watson - Sim. Se a China continuar crescendo no mesmo ritmo, vai precisar de mais energia. E, se os chineses continuarem a queimar o carvão, que é mais barato, vão emitir muito mais carbono. Para evitar isso, eles teriam de usar mais gás natural e combustíveis como hidrogênio e recursos renováveis como energia eólica e solar.
ÉPOCA - No ano passado, a Amazônia brasileira perdeu uma área de cerca de 20.000 quilômetros quadrados devido ao desmatamento florestal. Isso o preocupa?
Watson - Sim. Precisamos ajudar o Brasil a crescer sem devastar a floresta. Talvez o melhor caminho seja a comunidade internacional trabalhar junto ao governo brasileiro, remunerando os milhões de brasileiros que vivem lá para deixar a floresta de pé. (Época 14/2)