Goiânia continua símbolo da irresponsabilidade empresarial e governamental na questão nuclear
2005-01-31
Por Cláudia Viegas (Porto Alegre)
Passados quase 18 anos do acidente com a cápsula de Césio 137 – material radioativo abanodnado no Instituto de Radioterapia de Goiânia, encontrado e aberto por vendedores de sucata –, as pessoas afetadas pela radioatividade não conseguiram ainda a reparação de danos sofridos. A maioria não recebe sequer pensão, e nenhuma delas recebeu da União o direito a assistência médica e psicológica, nem mesmo acesso a medicamentos, a maioria deles caro.
O Ministério Público Estadual, que passou a atuar no caso a partir de 1999, depois que medidas judiciais tomadas pelo Ministério Público Federal não se mostraram efetivas para as vítimas, tem-se empenhado ao máximo em investigar e propôs uma ação civil pública reparatória para empregados de empresas e funcionários públicos que trabalharam na remoção de escombros, no transporte de lixo radioativo e no atendimento emergencial às primeiras vítimas.
O pior ainda está por vir
O período de latência do Césio 137 é de 16 anos, o que significa que, desde 2002, vêm aparecendo mais intensamente os efeitos maléficos da radioatividade sobre a saúde dos contaminados. Além de pessoas com câncer em várias partes do corpo, inclusive câncer de tireóide, muitas morreram em anos recentes, passada mais de uma década do acidente.
A segunda e a terceira gerações de nascidos após a abertura da cápsula, em setembro de 1987, apresentam sinais de mutações genéticas e problemas congênitos. Há bebês nascendo com baixo peso e estatura, com a coluna vertebral exposta, com falta de sensibilidade em membros como mãos e pés e até relatos de bebês xifópagos. No entanto, não se tem estatísticas sobre esses casos, pois não foram feitos estudos epidemiológicos de saúde na cidade. Inclusive, grandes universidades negaram ajuda ao Ministério Público Estadual durante a realização do mais recente inquérito, aberto em 2001, para investigar detalhes do acidente – muitos desses detalhes eram necessários para o estabelecimento do nexo causal entre a grande incidência de doenças graves e a radioatividade.
O promotor público estadual Marcus Antônio Alves Ferreira, coordenador do Centro Operacional de Apoio ao Cidadão de Goiânia, teve que recorrer a estudos estrangeiros para apoiar-se tecnicamente na elaboração do inquérito, na parte médica do documento.
Mas, segundo Ferreira, que participou de oficina de direitos humanos em apoio às vítimas do Césio, durante o 5º Fórum Social Mundial, no último sábado (29/01), o pior ainda está por vir, pois estima-se que efeitos mais maciços da exposição à radioatividade, a partir do acidente, ocorram lá pelo ano de 2017.
Funcionários públicos enganados
Policiais militares, bombeiros, funcionários de um consórcio rodoviário existente na cidade como sociedade anônima (Crisa) e diversos autônomos que trabalharam no isolamento da área e no transporte de escombros radioativos foram induzidos a pensar que estavam lidando com um simples vazamento de gás de cozinha quando foram convocados pelo governo do Estado de Goiás para atender a emergência. Eles não sabiam que estavam lidando com pessoas e áreas contaminadas. Não receberam equipamento de proteção radiológica para a atividade.
Alguns PMs só agora puderam vir a público para denunciar que apanharam dos superiores por perceberem que estavam ficando doentes e não mais poderiam continuar atuando no socorro às vítimas. Muitos foram afastados por problema de saúde, e não subiram de patente, contrariando o estatuto militar. O soldado – hoje na reserva – João Batista da Silva, que enfrentou tal situação, hoje tem um filho com sérios problemas de saúde, com o qual precisa desembolsar de R$ 400 a R$ 500 por mês, apenas com remédios. Ele recebe pensão indenizatória, mas o valor não é suficiente para cobrir gastos com assistência à saúde.
Quem é o responsável pelo CNEN?
O Ministério Público Estadual conseguiu do governo federal o reconhecimento apenas indireto pela responsabilidade no acidente, mas isso veio somente na época da campanha eleitoral para presidente e governador, no ano de 2002, quando o MPE estava realizando o inquérito civil. Mesmo assim, nada mudou. Na época do acidente, a clínica de radiologia onde a cápsula foi deixada estava de mudança, a área havia sido comprada pelo governo do Estado para as obras de um centro de convenções.
Os médicos responsáveis pela clínica não poderiam levar consigo a cápsula porque, por lei federal, apenas a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) pode transportar ou designar pessoas para a remoção e o transporte de material radioativo. Os responsáveis pela clínica colocaram um vigia a cuidar da cápsula, mas o tempo passou, a CNEN não apareceu nem enviou responsável para carregar o material.
A vegetação cresceu no terreno abandonado, a vigilância sobre a cápsula mostrou-se em vão e, por descuido, dois proprietários de uma sucata levaram o material para vender. Desde o dia 13 de setembro de 1987, Goiânia nunca mais foi a mesma. E o descaso da CNEN para com as vítimas continua igual.