Cachoeira da Bruaca (SC) desperta interesse pelo potencial hídrico
2005-01-05
Bruaca, para o resto do Brasil, é bolsa de couro ou mulher feia. Mas, para quem vai a Corupá, no interior de Santa Catarina, passa a ser a cachoeira que, a quilômetros de distância, anuncia a chegada à cidade pela BR-280. Ela se joga da Serra do Mar num salto de 96 metros, abrindo de alto a baixo um veio de espuma e névoa branca na mata nativa. Dali para a frente, rodando pelo município, é difícil perdê-la de vista, cada vez que numa curva da estrada o carro embica para o vale do Itapocu.
Resultado: tem gente de olho em seu potencial hidrelétrico. Ela está sendo convocada a gerar 15 megawatts, que parecem uma ninharia para tanta cachoeira, mas custarão caro à Bruaca e a Corupá. A usina desviará 17% do rio. Desmatará três mil metros quadrados da montanha. Cavará em suas costas 2.280 metros de túneis com 3,3 metros de circunferência, removendo para isso 24 mil metros cúbicos de rocha em encostas praticamente intatas. Fará uma barragem de seis metros de altura, inundando 4,5 hectares do planalto. E rasgará uma ferida difícil de cicatrizar num parque natural de 100 hectares - que, diga-se de passagem, está a seu lado quase por milagre.
O terreno pertence à Batistella. Ou seja, a uma madeireira. No caso, ela salvou a mata da motosserra. O Parque Ecológico Emílio Batistella – ou Rota das Cachoeiras, para os guias turísticos – está registrado como Reserva Particular do Patrimônio Natural. Inventariado pela Universidade Federal de Santa Catarina, credenciou-se como santuário de árvores raras, como a canela-preta. Aberto ao público, recebe 1.400 visitantes por dia, nos fins-de-semana mais agitados do verão. Seu livro de registro tem assinaturas do mundo inteiro. E, embora os roteiros turísticos passem em Corupá de raspão, só a Alemanha lhe manda 90 forasteiros por ano, trazidos regulamente por uma agência européia para fazer a trilha de 2,9 quilômetros, que passa por nada menos de 14 cachoeiras. — É preciso ter paciência com esses grupos, porque eles saem fotografando bromélias, formigas, tudo o que vêem pelo caminho, diz o engenheiro florestal Alexandre Rafeal Markun, que cuida da reserva.
A maior das quedas na Rota das Cachoeiras tem 76 metros de altura. A série completa só foi descoberta em meados da década de 80, quando um grupo de Corupá, incluindo um padre, um fotógrafo e um funcionário da prefeitura, explorou pela primeira vez a mata que, desde fins do século XIX, cai como uma cortina no fundo da cidade. A expedição achou, serra acima, as cachoeiras escondidas pelas árvores. Isso aconteceu há 15 anos. Mas, de três meses para cá, quem anda muito por ali dentro é a vangarda dos engenheiros, sondando com instrumentos de medição o caminho para a obra. A usina será uma PCH. Quer dizer: uma Pequena Central Hidrelétrica, que pela relativa modéstia de seus quilowatts recebe incentivos especiais do governo brasileiro. Por exemplo, um processo simplificado de licenciamento. O projeto começou a ser discutido há cinco anos. Está orçado em 28 milhões de reais, a serem bancados em partes desiguais pelo BNDES e os seis investidores privados. O banco oficial arcará com 70%. Os donos racharão os outros 30%. Tratando-se de uma legítima PCH, a construção foi aprovada em meados do ano pela pela Fatma, a fundação estadual do meio ambiente de Santa Catarina, sem passar pelos salamaleques das audiências públicas.
Guardada até agora pelo regime de regalias, a notícia acaba de debutar como fato consumado na imprensa local, precedida esta semana por denúncias do ambientalista Germano Whoel e escoltada por avisos oficiais de que os trabalhos começam em janeiro. — O bom é que a região passará a ter reserva técnica para situações de blecaute, disse ao jornal A Notícia, de Jaraguá do Sul, o engenheiro Ney Emílio Clivati, gerente da Corupá Energia Ltda., uma empresa criada especialmente para tirar energia da Bruaca. Corupá bem que mereceria ser tratada com mais respeito. Mesmo porque, tem uma longa tradição de teimosia. Nasceu 1897, fundada por colonos alemães, austríacos e suíços num sertão onde custou a brotar a primeira estrada carroçável, mas dois anos depois já tinha a primeira escola. Chamou-se Hansa Humboldt até a Segunda Guerra Mundial, quando um surto de nacionalismo lhe deu, à revelia, depois do rompimento do governo brasileiro com a Alemanha nazista, o nome tupi. A cidade esperou até 1997 para retomar suas tradições européias, criando o grupo de danças folclóricas Volkstangruppe Neufluss. Neufluss quer dizer Rio Novo, matriz da primeira hidrelética que funcionou no município.
Hoje Corupá é uma cidade de 12 mil habitantes, a 217 quilômetros de Florianópolis. Na última edição do Guia Quatro Rodas coube em quatro centímetros quadrados. Apresenta-se, oficialmente, como a capital da banana em Santa Catarina. O título, que lhe foi outorgado pela assembléia legislativa dos anos atrás, inspira a prefeitura a promover a Bananafest no mês de outubro e, no resto do ano, os agricultores a derrubar o mato para que os bananais avancem sem parar sobre os morros do município. Se não fosse pela febre da banana, teria tudo para se dedicar ao turismo. Corupá é o tipo do lugar que todo brasileiro deveria visitar, para ver como o Brasil já foi bonito. Ao redor da cidade, basta seguir uma estrada de terra ladeira acima para dar em propriedades como a do agricultor Evald Faust, onde uma imensa cachoeira escorrega por dezenas de metros num paredão de basalto, até cair numa piscina natural no meio da floresta. Faust tem 170 mil metros quadrados de floresta nativa. E recentemente passou a explorá-los em fins-de-semana, vendendo tira-gosto e bebida a banhistas. O que ele fez não está nos manuais de eco-turismo. Escalavrou um barranco para calçar o caminho com saibro. Exagerou na terraplenagem para abrir vagas no estacionamento. Canalizou o esgoto para o rio. E pôs uma usina doméstica sob a queda d’água, para alimentar o bar com eletricidade.
Mas, diante dos bananais da vizinhança, a mata de Evald Faust é quase um museu a céu aberto da flora brasileira. Com meia dúzia de terras com a dele, Corupá estaria pronta para mostrar ao país inteiro como quantos paus se faz o progresso de um município. Mas para isso não há incentivos fiscais nem dinheiro fácil do governo brasileiro. Ou seja, para gente como Faust não é muito difícil achar um programa tipo PCH que se pudese traduzir como Pequeno Centro do Habitat, para transformar em negócio a conservação da natureza brasileira. (Marcos Sá Corrêa, www.oeco.com.br)