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2004-09-14
Por Marsha Hanzi

Imagine esta cena: de um lado uma terra estorricada, com uns pés de mamona minúsculos morrendo de sede. A cinco metros, uma parede verde de dois metros de altura, uma complexa mistura de mamona, andu (guandu), feijão de porco, gergelim, feijão de corda, palma, árvores forrageiras e mudas pequenas de árvores de frutas. Em baixo desta massa o chão é tão molhado que parece que choveu naquele dia. Resultado de irrigação? Não. Resultado do modelo agrícola apropriado para o clima semi-árido: a policultura.

Existe a mitologia de que no Sertão chove pouco. Isto não é verdade. No Sertão chove o bastante para o ecossistema de lá: um conjunto enorme de fauna, ervas medicinais, madeiras nobres, frutas, forrageiras e cultivos anuais adaptados para este clima. O problema é a perda da água de chuva e não a falta de chuva. Pesquisas em regiões semi-áridas, confirmadas pela EMBRAPA de Petrolina, mostram que a tendência é de perder 80% da água pela ação do vento, do sol e da enxurrada. Na época das chuvas os rios do Sertão transbordam. Onde há enchente, terá seca, porque aquela água foi embora.

O que precisamos para tornar o Sertão um lugar de abundância, com produção confiável, mesmo nos anos secos, são estratégias de manejo para conservar a água. Felizmente, estas estratégias existem, são conhecidas e testadas, podendo aplicar-se em grande escala com toda confiança. São seis ao todo, às quais chamo os seis passos para a agricultura sustentável.

Cortar o vento. Poucas pessoas se dão conta que, se chove 500 mm, o vento seco pode levar embora 1,500 mm - três vezes mais do que chove! Um quebra-vento portanto, pode ser a estratégia mais importante para resgatar a agricultura no Sertão. Este quebra-vento pode ser de qualquer vegetação que resista à forca do vento, mas o agricultor pode escolher faixas de multiuso que, além de proteger os campos de cultivo do vento, dão produtos tais como forragem e madeira. Até algumas frutas nativas podem servir para esta função, tais como o caju-anão (por causa da seu porte baixo) a quixabeira e o juazeiro, estes fornecendo alimentos para a fauna e abundante queda de folhas que servem para adubar a terra. De forma geral, estas faixas devem ter uma forma arredondada (encaminhando o vento suavemente por cima delas) permitindo a penetração de uma parte do vento (idealmente 40%) para que não crie turbulência. O efeito destas faixas é percebido até uma distância de 10 vezes a altura da faixa (uma faixa de 3 metros de altura protege uma faixa de plantio de 30 metros). Esta estratégia representa um aumento real de produção, tanto das culturas anuais, quanto dos produtos das próprias faixas.

Cobrir o chão. O costume de deixar o campo limpo vem da Europa, onde os solos frios e úmidos, precisam ser abertos para receberem o sol da primavera, para seca-los. Será que os nossos solos precisam ser abertos para secar mais ainda. Se inserirmos nos campos plantas que podemos podar para criar cobertura morta, nunca mais precisaremos abrir o chão. Em vez de arar e capinar para tirar os matinhos, podemos abafa-los com a cobertura. Ao mesmo tempo o solo fica protegido dos raios do sol e o material se transforma gradativamente em adubo de excelente qualidade.
Policulturas. Os antigos no Sertão praticavam policulturas complexas e elegantes que integravam elementos de ciclo curto (feijão) de ciclo médio (milho) e de ciclo longo (mamona), com arbóreas (algodão mocó) e rasteiras (abóbora, batata-doce, feijão de corda, melancia, maxixe). Isto dentro de clareiras da caatinga, protegendo assim os campos do vento, conservando ao mesmo tempo o ecossistema nativo para caça e coleta de frutas e medicinais. O Instituto de Permacultura da Bahia está coordenando o Projeto Policulturas na região de Irecê, Cafarnaum e Jacobina que é a sistematização deste sistema antigo, integrando culturas de ciclo extremamente curto (rabanete e rúcula) curto (feijão, feijão de porco, gergelim), médio (milho, girassol), longo (andu, mamona) e árvores, tanto adubadeiras e forrageiras quanto de madeiras nobres e frutas. Depois de três anos do sistema implantado, o agricultor tem a opção de podar todas as árvores para retomar as culturas de ciclo curto, esta vez num campo muito mais fértil e úmido, ou de deixar uma agrofloresta instalada, ocupando assim gradativamente a sua propriedade com o sistema florestal (de frutas, madeiras e forragem), muito resistente à seca.

Estas policulturas têm surpreendido pelo aumento de produtividade, desde o primeiro ano. Veja um exemplo:
Mamona: 550 Kg/há (produção média da região de mamona)
Mamona no policultivo 660 Kg/há (Aprox. 20% a mais do que no plantio tradicional que é consorciado só com feijão)
Possuindo ainda a produção de:
Milho: 60 Kg
Feijão: 180 Kg
Palma: 833 pés (hoje se planta 1 palma por metro quadrado=10,000 pés/há)
Girassol: 40 kg
Gliricídia: alguns pés (árvore que serve para adubo e forragem)
Feijão de porco: 35 kg
Gergelim :60 kg
Andu: 12 kg
Abóbora :100 unidades ou mais
Melancia: 150 unidades ou mais
(Povoado de Alagoinhas, Município de São Gabriel, região de Irecê, dados de 2001)
Como cada região é única, a policultura pode ter infinitas variações, mas sempre representa um aumento de umidade, fertilidade e produtividade.

Plantar árvores sempre que puder

Qualquer canto da propriedade que não esteja sendo utilizado para culturas anuais pode ser plantado com árvores, a aposentadoria mais segura do agricultor, já que hoje uma boa arvore de madeira (para mourão, etc.) vale mais de cem reais. Plantadas da forma certa ( com um pé de mandioca e de palma para garantir a sobrevivência), praticamente não exigem mais cuidados, podendo deixar crescer à vontade. Além de representar uma renda futura, estas árvores aumentam a umidade da propriedade, atraem pássaros, cortam o vento e fornecem produtos tais como frutas e forragem para os animais na seca. E transformam a paisagem num espetáculo de beleza...

Manejar os animais.
Um boi que se vende com quatro anos de idade por mil reais parece um bom negócio. Mas precisamos fazer o cálculo certo:
R$1,000 dividido por 4 anos = $250 por ano. Dividido por 2 hectares(no Sertão, provavelmente precisa de mais espaço ainda...) = R$125 por hectare (ou R$ 55 por tarefa), dividido por doze meses =menos de R$12.50 por mês de renda por hectare! Ao mesmo tempo o animal, do jeito que se cria no Sertão, devasta a terra, rapando-a da última vegetação, deixando-a exposta ao vento e ao sol ao longo dos meses mais quentes do ano. Como resultado, esta terra produzirá pouco no ano seguinte, e teria capacidade perto de zero de retenção da água.

A solução volta a ser as faixas de vegetação, que podem ser forrageiras, e elementos da própria policultura (como andu) que ficam como forrageiras, uma vez feita a colheita das culturas anuais. Se o animal transita rapidamente em cada faixa, terá uma abundância de alimentos a disposição e não chegará a destruir a cobertura vegetal. (Neste caso é interessante colocar as faixas a cada 10 metros.) Assim , menos animais com crescimento mais rápido representa um lucro maior sem por isso destruir a terra.

Acoplado a estas faixas deve-se haver uma área de descanso, com árvores, água e sal mineral, onde o animal se abriga do calor. Nas horas mais quentes o animal exposto gasta muita energia tentando resfriar seu corpo parando de pastar. Economizando esta energia, o ganho de peso é maior. E o agricultor terá a oportunidade de aproveitar o esterco que acumulará nesta área para os seus cultivos do ano seguinte.

E,sobretudo, este sistema representa um respeito maior para o animal, para as suas necessidades e o seu conforto, uma ética que deve fazer parte de toda filosofia do campo.

6) Fazer cisternas onde puder. O telhado é a melhor máquina de produzir água imaginável para o Sertão. Uma área de 100 metros quadrados produzirá, em anos normais de 400 mm de chuva, 40,000 (quarenta mil!) litros de água limpa e doce. Se aproveitar todos os telhados e até criar mais superfícies de captação (no terreiro, em afloramentos de pedra, até no chão com áreas gramadas), o agricultor, com um único investimento, garantirá água para sua família , seus animais, e eventuais pequenas irrigações para uma horta caseira ou de salvação de mudas jovens, etc ao longo dos anos. Existem muitos modelos de cisternas, cada mais barato do que o outro. Em Irecê a ONG Garra está divulgando uma cisterna desenvolvida por um agricultor que exige somente arame e um pouco de cimento, ficando pronto em três dias. Felizmente, existe hoje um forte movimento no Brasil de divulgação e construção de cisternas para a água de chuva. Mesmo assim, não têm alcançado todas as regiões do nosso Sertão.

Com estas seis estratégias o agricultor tem produtos todos os anos, já que nos anos onde falha o milho terá as culturas mais resistentes e os produtos das árvores. Assim ele tem segurança alimentar e renda garantida. O solo dele fica gradativamente melhor, com aumentos a cada ano de produção. Ele se transformará em pequeno empresário na sua própria terra, aprendendo a planejar para o ano seguinte (já que o sistema evolui) e comercializar seus produtos. Com a produção que o Projeto Policultura no Sertão mostra, é provado que é possível morar bem no Sertão mesmo com pouca terra. É só questão de planejamento e manejo.

O Projeto Policultura é financiado pelo Fundo Nacional de Meio Ambiente e Paises Baixos Ambiente. Conta também com a colaboração da Conservation Food and Health Foundation e indústria de mamona: Bom Brasil Óleo de Mamona, Atofina/França e Lista Intl. Holliston/Md.EEUU.

Marsha Hanzi é professora e consultora de Permacultura. Atualmente está montando um projeto na região de Jorro, no sertão baiano. Contatos com o Instituto de Permacultura da Bahia: mailto:permacultura.bahia@terra.com.br www.permacultura-bahia.org
ou pelos telefones (071) 232-4025 / 91173269 / 99620916

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