Agrotóxicos: Especialista estima que há 1,5 milhão de trabalhadores intoxicados no país
2004-08-30
Sebastião da Silva Filho tem 46 anos e desde os 21 trabalha na lavoura. Durante todo esse tempo, nunca usou luvas, máscara ou avental para se proteger dos efeitos nocivos dos agrotóxicos nas videiras em São Paulo, onde trabalha. O hábito lhe causou problemas crônicos como fadiga, dor de cabeça, câimbras e olhos irritados.
— A gente pensa que só faz mal para os outros, não para a gente — lamenta Sebastião, que começou seu tratamento em julho passado. O drama de Sebastião atinge, no mínimo, 1,5 milhão de trabalhadores rurais no Brasil, pelas estimativas do professor e médico Angelo Trapé, coordenador do Programa de Vigilância da Saúde das Populações Expostas a Agrotóxicos da Universidade de Campinas (Unicamp). Durante três anos, médicos e estudantes do programa investigaram 2.500 trabalhadores na área metropolitana de Campinas. Na apuração, detectou-se que 7,5% desses agricultores apresentavam efeitos adversos relacionados à exposição prolongada aos venenos.
— São problemas renais, dermatológicos, neurológicos, hepáticos, gastrointestinais. Apresentam intoxicação crônica ou efeitos adversos que precisam de afastamento da lavoura e tratamento — afirma o professor da Unicamp, que há 28 anos pesquisa os efeitos dos venenos na saúde do trabalhador. Pelas contas do médico, considerando uma população de 20 milhões de trabalhadores rurais, 7,5% estariam nas mesmas condições. O que, na avaliação do professor, é uma estimativa conservadora:
— Se em Campinas, onde o trabalhador tem mais acesso à informação sobre uso do agrotóxico, 7,5% dos expostos têm efeitos adversos, em regiões mais pobres, onde o acesso à informação é difícil, a situação pode ser pior — alerta Trapé. O professor diz ser importante um programa de vigilância nos municípios para monitorar a saúde do trabalhador rural:
— O acompanhamento poderá evitar as intoxicações crônicas. Se o trabalhador for afastado da lavoura e receber tratamento, fica curado. O governo deveria ter controle rígido sobre a venda dos agrotóxicos e obrigar o fornecimento dos equipamentos de proteção individual.
O número estimado pela Unicamp não surpreendeu a médica sanitarista da Fundacentro, órgão do Ministério do Trabalho, na Bahia, Letícia Nobre. Ela diz que o total pode ser até maior, diante da subnotificação de casos de intoxicação no Brasil:
— O uso de agrotóxicos e seus impactos na saúde configuram um grande problema de saúde pública. Tanto que o Ministério da Saúde tornou obrigatória a notificação de intoxicações por substâncias químicas, incluindo agrotóxicos.
Mesma opinião de Letícia tem a médica e coordenadora da Saúde do Trabalho da Secretaria estadual de Minas Gerais, Jandira Maciel, que há dez anos estuda os efeitos do uso de veneno na saúde do trabalhador:
— Se pensarmos que a tecnologia no mundo rural é o agrotóxico, podemos concluir que a estimativa do professor é até conservadora. A projeção é, no mínimo, real.
E os efeitos dos agrotóxicos aparecem cedo. Francisco Nunes da Silva tem só 18 anos, mas após oito anos de trabalho em plantações de fumo, milho e rosas em São Paulo apresenta um histórico clínico igualmente preocupante. Ele se queixa de tosse e alergia nas mãos e no peito.
Sebastião e Francisco fazem parte de um grupo que cresce na mesma medida do avanço da indústria química (a produção de agrotóxicos cresceu 11,6% de janeiro a junho deste ano, segundo o IBGE). Sebastião conta que é o único de quatro funcionários de uma plantação de videiras que não usa o equipamento de segurança. Seu exemplo é extremo. No caso de Francisco, o uso do equipamento não foi suficiente. Há um ano, ele deixou Alagoas para se empregar no corte de rosas em uma fazenda de Holambra, famosa por produzir e vender flores em qualquer estação do ano. Francisco usa luvas de couro e um avental especial, mas diz que sempre chega ao fim do dia ensopado de veneno:
— Vai uma pessoa na minha frente pulverizando o agrotóxico e eu atrás, cortando a rosa — explicou. A empresa de Francisco foi uma das visitadas em julho por médicos da Unicamp que, mensalmente, escolhem uma região para inspecionar. Um teste de sangue permite verificar se a exposição ao agrotóxico diminuiu a ação de uma enzima chamada colinesteraze, importante na transmissão de impulsos nervosos entre as células. Reclamações como dor de cabeça constante, garganta seca e olhos irritados também são considerados na hora do diagnóstico.
Segundo Jandira Maciel, de Minas Gerais, há várias doenças relacionadas à exposição prolongada ao agrotóxico, como cânceres, problemas no sistema nervoso central e periférico e alterações no sistema imunológico:
— O sistema dos trabalhadores expostos ao veneno tem uma resposta aquém da esperada. Tratorista de profissão, Paulo Freitas, de 42 anos, chegou a ficar um mês longe de agrotóxicos. Foi uma etapa sem o desconforto de enjôos, tonturas e descontrole emocional.
— Ficava nervoso e irritado por qualquer coisa — conta ele, que teve de retomar o tratamento porque os sintomas reapareceram.
Um dos casos mais graves é de Josélia da Silva, de 17 anos, que passou toda a gravidez no roçado no meio de agrotóxicos, no Agreste pernambucano. O bebê nasceu com uma doença rara, de difícil diagnóstico, e terminou morrendo no mês passado.
Há estudos sobre ligação do veneno com depressão e suicídios
Efeitos emocionais causados pela exposição estão sendo estudados. Letícia Nobre diz que a situação é mais perversa quando se olha o número de suicídios com agrotóxicos:
— Há estudos para ver a relação do veneno com depressão e surtos de alucinação. Como com uma mudança climática o produtor pode perder tudo, se ele sofrer de depressão pode se suicidar, e com agrotóxicos. São venenos altamente letais. (O Globo, 37, 29/08)