Desmatamento faz Brasil ser o quinto poluidor mundial
2004-07-19
Por Ricardo Arnt
Está pronto o Inventário Brasileiro de Emissões de Gases do Efeito Estufa que estima o total dos gases emitidos no Brasil que contribuem para o esquentamento da temperatura do planeta. Não é sem tempo. Há doze anos, na Rio-92, os países signatários da Convenção sobre Mudança do Clima comprometeram-se a realizar inventários de emissões e divulgar comunicações nacionais sobre suas estratégias para enfrentar o problema. O trabalho iniciado em 1996, prestes a ser concluído pela Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima, do Ministério da Ciência e Tecnologia, já pode ser acessado, em partes, no site do ministério, com exceção do capítulo Mudanças do Uso da Terra e Florestas que engloba as emissões geradas pelas queimadas e pelo desmatamento na Amazônia. Neste, você clica para fazer download e nada aparece.
A razão é simples: quando os números oficiais do carbono emitido pelo desmatamento forem divulgados, o Brasil passará a ser o quinto maior poluidor mundial, depois dos Estados Unidos, da China, da Rússia e do Japão. Sabe-se que as anomalias climáticas do planeta resultam de um processo histórico de acumulação de poluição iniciado pela Revolução Industrial nos países do hemisfério norte em 1750, enquanto o desmatamento tropical é um processo relativamente recente. A responsabilidade histórica de países como o Brasil é menor, mas não apaga a evidência de que o país é um dos maiores emissores de gases estufa do planeta, à frente da Índia, da Alemanha, do Canadá, do Reino Unido, da Itália, da Coréia do Sul e da França. E o Brasil é um dos líderes da campanha mundial pelo Protocolo de Kyoto, o tratado que estabelece metas globais de redução dos gases, assinado e ratificado por 120 países, mas ainda não em vigor.
Até agora os números das emissões brasileiras foram tratados como segredo de Estado. O público não está informado, mas os especialistas já sabem há tempo que o desmatamento gera entre 60% a 70% do carbono lançado na atmosfera pelo Brasil enquanto a queima de combustíveis fósseis (gasolina, carvão mineral, gás) produz o restante. Os números que o Inventário deverá revelar, referentes ao ano de 1994, são da ordem de 200 milhões de toneladas do gás provenientes das -mudanças do uso da terra- e de 80 milhões de toneladas derivadas da queima de combustíveis fósseis – ou seja, 280 milhões de toneladas por ano, quinto lugar no ranking esfumaçado segundo os dados da Energy Information Administration norte-americana. Na verdade, a poluição brasileira é maior do que isso, pois 1994 foi um ano de desmatamento -moderado-. Se fossem computados os dados do desmatamento de 2003, o resultado aproximaria o país das emissões do ultra-industrializado Japão.
Lula tem pouca sensibilidade para a questão climática
A qualquer momento, esses números vão cair no colo do governo e haverá mais um escândalo internacional para administrar. — Na hora em que o Brasil reconhecer os dados do Inventário, a lupa vai cair sobre o governo Lula e a imprensa mundial vai colocar o país na berlinda, adverte o meteorologista Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um dos revisores do trabalho. — Acho 280 milhões de toneladas um número assustador, diz Paulo Moutinho, ecólogo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). — No futuro, quando o Protocolo de Kyoto entrar em vigor, haverá grandes pressões sobre Brasil, Índia e China para adotarem metas de redução. Como a economia brasileira deve crescer e o desmatamento aumentar, o país poderá se ver numa situação dramática. O drama poderá ser maior se as mudanças climáticas se acentuarem - por exemplo, convertendo ciclones em furacões no Atlântico Sul, como sugeriu a passagem do Catarina por Santa Catarina, em março.
Entretanto, aparentemente, o governo não está alarmado. Apesar dos esforços da ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, para instaurar a transversalidade ambiental nos programas de desenvolvimento, a questão parece sensibilizar pouco a cúpula do poder. Em abril, desgostoso com a indiferença com que a questão climática vem sendo tratada no governo Lula, o ex-deputado Fábio Feldman, do PSDB, demitiu-se do cargo de secretário-executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas. Na carta de demissão enviada ao presidente, Feldman ressaltou que: — nesta nova gestão, em 18 meses o Fórum não se reuniu com Vossa Excelência, nem tampouco houve decisão acerca do seu futuro. O fórum foi fundado em 2000, no governo FHC para mobilizar a sociedade para o tema. Liderada pelo próprio Presidente da República, com a participação de 10 ministérios, personalidades e ONGs, reuniu-se quatro vezes com o chefe do executivo no governo anterior.
Muitos interpretaram a demissão de Feldman como uma discriminação petista contra tucanos, mas o ex-secretário prefere acreditar mesmo em inoperância. — O governo é negligente e indiferente ao tema. FHC era um presidente cosmopolita, que percebia a importância e tinha gosto pela articulação de um movimento global desse porte. O presidente Lula tem pouca sensibilidade para a questão climática. Ele nunca se reuniu com ONGs ambientais, por exemplo. O PT acha que substitui a sociedade civil, diz Feldman.
Segundo ele, o Inventário de Emissões que poderá ser revelado ainda em julho arrasta-se há oito anos a reboque da negociação dos interesses brasileiros no Protocolo de Kyoto. — O Brasil é um líder desse processo. Somos a menina bonita do baile com quem todos os diplomatas querem dançar. O governo evitou divulgar os números das emissões na Amazônia porque sabia que eles fragilizavam sua posição. Mas, depois que os termos do Protocolo foram definidos pela 7a. Conferência de Partes, em 2001, descartando programas de conservação de floresta, o ocultamento das emissões do desmatamento tornou-se desnecessário. — Desde 2002, os números já poderiam ser revelados. A decisão de adiar o Inventário foi política, não técnica, diz Feldman.
Não que as questões técnicas sejam triviais. — O caso do Brasil é extremamente complicado porque temos todo tipo de atividade, mas não um sistema de informações desenvolvido como no Primeiro Mundo, diz o engenheiro José Miguez, secretário-executivo da Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima, o órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) encarregado do estudo. — Não sabemos nem o tamanho da frota de veículos do país. É um caos. Tivemos que criar informações e estabelecer metodologias para todos os setores. O inventário exigiu um vasto esforço de pesquisa e contou com a participação de alguns dos melhores cientistas brasileiros, como Carlos Cerri (USP), Niro Husuchi (INPA) e Carlos Nobre (INPE). — O estudo está muito bem feito e os indicadores são bastante bons. Falta uma redação final e um momento adequado para revelá-lo, diz Paulo Moutinho.
Brasil bloqueou discussão sobre desmatamento
Miguez contou ao Estado de S. Paulo que sua equipe estimou a emissão de gases de cada setor da economia, desde a quantidade de metano produzido no intestino de um boi numa fazenda até o carbono emitido pela caldeira de uma indústria ou pelo forno de uma pizzaria. No caso do desmatamento, a estimativa baseia-se na quantidade de gases emitidos conforme a densidade e o tipo de vegetação, extrapolada a partir de medições locais. Como as moléculas dos gases permanecem séculos na atmosfera, as emissões históricas, acumuladas pelo Brasil ao longo do tempo, são da ordem de 1% do total mundial, enquanto as emissões atuais ultrapassam os 3% dos 7 bilhões de toneladas lançados na atmosfera por ano. — Nossa contribuição é pequena porque é muito recente, diz Miguez.
Talvez o governo prefira o trabalho dos cientistas da Comissão Interministerial às ONGs do Fórum. Politicamente, pode ser mais rendoso. — O ensaio do Fórum de abrir a discussão climática para a sociedade micou, afirma o ex-deputado Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental. — O PT prefere o modelo da Comissão Interministerial, controlado pelo MCT, governamental e centralista, mais coerente com seu perfil. Além do mais, a questão climática diz respeito ao futuro e não há nada para capitalizar no primeiro mandato. Segundo Santilli, reina enorme confusão dentro do governo e muita incompreensão sobre a questão climática. — E quando não existe direção, a burocracia do Itamaraty toma conta, diz ele.
Na sua interpretação, o Brasil jogou a questão do desmatamento para debaixo da mesa no Protocolo de Kyoto, desqualificando todas as propostas para tornar programas de redução do desmatamento elegíveis como Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL) – aqueles projetos de seqüestro de gases financiáveis por investimentos externos e geradores de créditos de carbono negociáveis. Nesse ponto, o conservadorismo do Itamaraty aliou-se ao globalismo de ONGs como Greenpeace e Amigos da Terra contra as ONGs brasileiras, vetando propostas que teoricamente permitiriam aos países industrializados obter créditos de carbono baratos em florestas tropicais para compensar o alto custo da redução da sua poluição doméstica. — O Brasil bloqueou a discussão sobre desmatamento na Convenção do Clima, tratando-a como um atentado à segurança nacional, diz Santilli.
Um dos principais negociadores foi o físico Luiz Gilvan Meira Filho, que até o ano passado era conselheiro da Secretaria do Protocolo de Kyoto, em Bonn, e hoje trabalha no Instituto de Estudos Avançados da USP e assessora o ministro Luiz Gushiken no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Gilvan discorda das críticas à suposta indiferença do governo pela questão climática. Lembra que o presidente Lula já ligou pessoalmente para o presidente Putin, da Rússia, para pedir sua adesão ao Protocolo de Kyoto. — O problema do esvaziamento do Fórum é uma questão de interpretação. Há visões distintas sobre o problema, diz. Uma prova de abertura é o pedido oficial a especialistas tucanos como Fábio Feldman e o secretário de Meio Ambiente de São Paulo, José Goldemberg, para contribuírem com os estudos em curso sobre o impacto das mudanças climáticas no país, encomendados pelo ministro Gushiken.
23.000 km2 desmatados em 2003
Gilvan também lembra que o princípio da responsabilidade comum, porém diferenciada do Protocolo de Kyoto, que separou o grupo de países industrializados listados no chamado Anexo 1 (obrigados a metas de redução da poluição entre 2008 e 2012) dos países em desenvolvimentos do Anexo 2 (credenciados a receber recursos externos para implantar projetos de desenvolvimento sustentável), foi uma vitória suprapartidária da diplomacia brasileira. — Muita gente contribuiu para isso. Vem desde o governo Collor, com os ministros Marcílio Marques Moreira, José Goldemberg e Celso Lafer. Houve também a contribuição decisiva dos ministros Celso Amorim, no governo Itamar Franco, e Ronald Sardemberg e Luis Felipe Macedo Soares, do governo FHC.
Para o negociador brasileiro, o princípio da quantificação da responsabilidade foi sua maior contribuição ao Tratado. — A idéia de fazer inventários por países para medir o impacto histórico das emissões foi minha. O importante não é quanto você emite hoje, mas quanto a emissão contribuiu para a mudança da temperatura. Isso evita que, depois de assistir ao filme O Dia Depois de Amanhã, surja alguém propondo penalizar os países em desenvolvimento com metas draconianas. Para o cientista, o Brasil vai ter de encontrar formas para diminuir suas emissões no futuro, inclusive enfrentando o custo adicional de não aumentá-las. — O clima está mudando e vai afetar a todos. Eu nunca neguei as emissões do desmatamento, que é um grave problema de ordenamento territorial. Só queria que o problema fosse assimilado aos poucos. Alguma coisa terá de ser feita, mas acho que esperar que nos paguem para não desmatar não vai funcionar. Segundo Gilvan, o atual governo está tentando fazer o que pode, tanto quanto os outros.
Alguma coisa é pouco diante da repetição de altas taxas de desmatamento na Amazônia, ano após ano. — A questão climática vem sendo tratada com negligência pelo governo desde sempre, tanto pelo FHC quanto pelo Lula, diz o meteorologista Carlos Nobre, do Inpe. — Talvez o Feldman tenha conseguido um pouco mais de visibilidade para o Fórum, mas na prática isso não adiantou nada. Mais 23.000 km2 de floresta foram desmatados no ano passado. Tal como a inflação no passado recente do país, a criminalidade no Rio de Janeiro ou a corrupção em São Paulo, o problema do desmatamento desafia a governabilidade. O país não consegue administrá-lo.
Nobre considera um progresso o Plano de Combate ao Desmatamento na Amazônia, lançado pelos ministros José Dirceu e Marina Silva em dezembro, mas está aflito com o resultado. — Se não der certo e o desmatamento aumentar em 2005, o Brasil vai ficar numa posição muito difícil. Diante do avanço das anomalias climáticas, ficará difícil para o país posar de líder ecológico sendo o quinto maior poluidor mundial. — Responsabilidade comum, porém diferenciada, não significa irresponsabilidade, lembra Paulo Moutinho. —A recusa de discutir o desmatamento em Kyoto elidiu 25% do problema mundial, mas o problema vai voltar, agravado. Para o ecólogo do IPAM, a ausência de progresso e de resultados positivos sobre o controle do desmatamento vulnera toda a sociedade. — A preocupação do governo está muito aquém da importância e das implicações que a questão terá para o país no futuro.(NoMinimo 15/07)