Um novo gás para o Brasil
2004-06-22
André Trigueiro
Não bastassem as riquezas naturais que o distinguem no cenário internacional, o Brasil se revela igualmente rico na produção de um gás até então desprezado como insumo energético: o metano (CH4), resultante da decomposição da matéria orgânica. Imensos estoques desse gás combustível
estão armazenados no lixo e nos esgotos que são displicentemente
descartados em todo o País. Segundo o recém-lançado Atlas do Saneamento do
IBGE, 63% das nossas cidades abandonam o lixo a céu aberto em vazadouros,
e menos de 20% dos esgotos recebem algum tipo de tratamento. Trata-se
de um enorme desperdício de energia e de dinheiro. Após dois anos de
pesquisas, técnicos do Ministério do Meio Ambiente revelaram o potencial
energético dos aterros de lixo de 91 cidades brasileiras. Até 2005, a
previsão é a de que a energia ali armazenada seja de 344 megawatts, o
suficiente para abastecer 6 milhões e meio de pessoas. Para 2015,
estima-se que o estoque de biogás acumulado chegue a 440 megawatts, o que daria
para abastecer a população de Pernambuco, aproximadamente 8 milhões de
pessoas.
A maior usina de energia do mundo sobre um aterro de lixo já está
funcionando desde o início do ano em São Paulo. O gás metano estocado no
Aterro Bandeirante tem capacidade para gerar energia durante 10 anos para
uma população de 400 mil pessoas. A queima do gás tem ainda outra
função importante: reduzir os impactos sobre o aquecimento global. Um dos
grandes vilões do efeito estufa, o metano tem poder de aquecimento 23
vezes superior ao do dióxido de carbono (CO2). Por esse motivo, além de
gerar energia, a queima desse gás traz efeitos benéficos o planeta.
A queima perfeita do metano - mesmo sem estar associada à geração de
energia - transformou-se em negócio milionário por conta dos chamados
créditos de carbono. Os países industrializados, que de acordo com o
Protocolo de Quioto têm a obrigação de reduzir as emissões de gases estufa,
podem fazer isso investindo em projetos que alcancem esse objetivo,
fora de seus territórios, em países em desenvolvimento, como o Brasil. E o
potencial de investimentos em créditos de carbono no Brasil, segundo o
já citado estudo do Ministério do Meio Ambiente, chega a 70 milhões de
dólares, considerando-se apenas a queima de gás metano nos aterros de
lixo. A concessionária que administra o novo Aterro Sanitário de Nova
Iguaçu, na Baixada Fluminense, obteve o aval do Banco Mundial para vender
créditos de carbono ao governo holandês no valor de 8,5 milhões de
euros. O pré-contrato já foi assinado e é o primeiro do gênero no País.
Mesmo sem ter sido ainda implementado internacionalmente, o Protocolo vem
justificando inúmeros investimentos em energia limpa, reflorestamentos
e outras iniciativas que ajudam a reduzir os impactos do aquecimento
global.
Numa escala bem menor, mas igualmente importante, o metano também vem
sendo utilizado como fonte de energia em comunidades de baixa renda. Nas
favelas de Petrópolis, por exemplo, a concessionária de água e esgoto,
com o apoio da ONG Instituto Ambiental, vem replicando um tratamento
alternativo de esgoto que dispensa produtos químicos, imensas redes
coletoras e o uso de elevatórias. O esgoto de 400 moradores da favela
Independência é vertido para um biodigestor, onde as bactérias presentes na
matéria orgânica se alimentam dos nutrientes do próprio esgoto,
reduzindo a carga orgânica em até 95% num ambiente livre de oxigênio. Depois o
efluente ainda passa por um filtro biológico antes de ser lançado ao
rio, sem contaminantes. O resultado do banquete das bactérias é
justamente o gás metano, que é transportado por uma tubulação até o fogão da
creche comunitária, onde são servidas as refeições de 25 crianças. A
coordenadora da creche festeja a redução pela metade do consumo de gás de
botijão. Uma economia de 45 reais por mês, investidos agora na compra de
frutas que enriquecem a sobremesa da garotada. As obras para instalação
deste sistema - orçadas em 7 mil reais - acontecem neste momento na
favela do Bomfim.
De acordo com o governo federal, a conta do saneamento básico no Brasil
alcança a bagatela de 180 bilhões de reais. Este cálculo foi
inspirado no modelo convencional de tratamento de esgotos. Infelizmente, a
perspectiva de tratar a matéria orgânica com biodigestores e filtros
biológicos - bem mais barata e com o benefício da geração de gás metano -
não está sendo considerada.
Com o slogan O petróleo é nosso, a Petrobrás quebrou preconceitos e
se afirmou como a maior e mais lucrativa empresa do Brasil. Passaram-se
décadas até que o gás natural jogado fora das plataformas de petróleo
fosse entendido como insumo energético. Pois o metano também é nosso.
Que nenhum preconceito impeça o entendimento de que este é um recurso
energético que precisa o quanto antes ser melhor explorado, de forma
inteligente e sustentável. (O Globo)