A POLÍTICA INDIGENISTA DO GOVERNO LULA, UMA RETROSPECTIVA
2004-05-11
Quem espera por uma política indigenista consistente do atual Governo Federal tem razões de sobra para duvidar de que ela se efetive ainda neste mandato, algo que já foi questionado no especial Cem Dias a Espera de Uma Política Indigenista, elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) em Abril do ano passado (2003). Refém de compromissos contraditórios, o Presidente Lula patina há mais de 15 meses, sem conseguir traduzir em realidade uma intenção do período eleitoral, registrada no caderno temático Compromisso com os Povos Indígenas: Definir, em conjunto com as comunidades indígenas, os indigenistas, especialistas e setores políticos sinceros e interessados, uma política indigenista clara, democrática, objetiva, coerente, visando ao respeito e à garantia plena dos direitos à terra e à autodeterminação dos povos indígenas. Desde que Lula assumiu, houve, é verdade, providências quanto ao comando da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Eduardo Almeida, jornalista e indigenista ligado à Secretaria Nacional de Movimentos Populares do PT, foi nomeado Presidente do órgão em Fevereiro de 2003. Aparentemente pouco afinado com o Ministro a que estava subordinado – Márcio Thomaz Bastos, da Justiça –, Almeida permaneceu na direção da FUNAI apenas até Agosto do mesmo ano. Após breve período de interinidade, o lugar foi ocupado pelo antropólogo Mércio Pereira Gomes, que, assim como o Ministro da Integração, Ciro Gomes, e os governadores Blairo Maggi (Mato Grosso) e Eduardo Braga (Amazonas), é filiado ao PPS, da base aliada do governo. Gomes segue à frente da FUNAI desde Setembro de 2003. A permanência de um presidente da FUNAI no cargo configura uma situação, todavia, insuficiente para que pudesse indicar estabilização e início de definição no setor. Desde o começo da década de 90, algumas atribuições da FUNAI, como a atenção à saúde e à educação escolar indígena, foram transferidas para outros órgãos da máquina estatal. Debilitada por esta e por outras razões, não é de hoje que a FUNAI tem-se mostrado incapaz de coordenar as ações indigenistas oficiais. Desse modo, interferir na sua linha de comando é pouco. Pode-se dizer que, embora na estrutura hoje vigente do Estado brasileiro não seja possível fazer política indigenista sem a FUNAI, tampouco se pode fazê-la apenas por meio da FUNAI. A candidatura Lula à Presidência da República apresentou algumas propostas inovadoras quanto à política indigenista, as quais, entretanto, não se converteram em execuções do novo Governo. Em meio a disputas, indefinições e/ou falta de sinergia entre setores do próprio Governo, o compromisso de realizar a Conferência Nacional de Política Indigenista, preferencialmente no primeiro ano de mandato, não se cumpriu. A criação de uma nova instância, que fosse capaz de articular as várias áreas do governo responsáveis por questões indígenas, a qual chegou a ser chamado de Conselho Superior de Política Indigenista, ficou igualmente apenas no papel. Na realidade, o governo Lula tem-se caracterizado, desde o início, por colocar diversos e pouco integrados de seus membros para investir na construção de diretrizes indigenistas de caráter mais geral. Além da FUNAI e do Ministério da Justiça, distintos segmentos do Ministério do Desenvolvimento Agrário, bem como a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena – ligada ao Conselho Nacional de Saúde, de natureza interministerial e com participação da sociedade civil –, engajaram-se em proposta herdada do governo anterior: o desenho de uma Política Nacional de Etnodesenvolvimento e Segurança Alimentar dos Povos Indígenas. Após 17 oficinas regionais por todo o Brasil, seguidas por um Fórum Nacional em Novembro de 2003, em Brasília, tal processo não teve maiores desdobramentos.
O que de mais concreto e semelhante ao seu tema aconteceu desde então foi o início de tratativas entre a Secretaria-Geral da Presidência da República e o novo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – produto da reforma ministerial de Janeiro de 2004 – por um lado, o Banco Mundial, por outro, e lideranças indígenas, por um terceiro, visando a que o programa de transferência de renda denominado Bolsa-Família seja estendido a populações indígenas. Em torno de assuntos indígenas, estruturas governamentais diretamente ligadas à Presidência da República, foram mobilizadas também em outros momentos e direções. A Secretaria-Geral da Presidência da República, sob a direção do Ministro Luiz Dulci, foi chamada a cuidar da reversão do tensionamento político promovido pelo movimento indígena da Amazônia, que, ao final de 2003, em Manaus, chegou a fazer uma queima simbólica, em praça pública, do documento Compromisso com os Povos Indígenas. Ainda nos primeiros meses do novo governo, o Conselho de Defesa Nacional (CDN) - órgão de Consulta do Presidente da República nos assuntos relacionados à soberania nacional e à defesa do estado democrático - e a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Conselho de Governo (CREDEN) - outro órgão de consulta do Presidente, voltado à formulação de políticas, estabelecimentos de diretrizes e acompanhamentos de programas relacionados a populações indígenas e direitos humanos, integração fronteiriça, entre outros - foram indicados pela Casa Civil para analisar a homologação de Terras Indígenas, procedimento que não faz parte do processo demarcatório previsto pelo Decreto 1.775/96, tendo caráter eminentemente político: o de protelar o reconhecimento de direitos territoriais indígenas.
São diferentes movimentações num mesmo espaço de poder, o do governo Lula. Carecendo de uma orientação comum, levam a questionar quem, neste governo, determina e quem determinará os rumos do indigenismo. Afinal, onde está e para onde caminhará sua política indigenista? Por enquanto, não há respostas animadoras. É de se notar que boa parte da atenção governamental indigenista nesses últimos 15 meses voltou-se para persistentes conflitos de interesses envolvendo demarcações de terras. As soluções aventadas ou praticadas nesses casos – dentre os quais releva-se o da Raposa Serra do Sol, em Roraima –, assim como as negociações no Congresso Nacional daí derivadas, manifestam claro compromisso com setores contrários aos direitos territoriais dos índios. (Fernando Vianna, antropólogo, assessor de políticas públicas do ISA Brasília. Com a colaboração de Márcio Santilli, Fernando Mathias e Fany Ricardo, do Instituto Socioambiental)