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2004-05-10
O uso de organismos geneticamente modificados (OGMs) na agricultura suscita inevitavelmente questões éticas. OGMs são utilizados porque empresas, agricultores e consumidores esperam se beneficiar de algumas das inovações presentes neles: por exemplo, safras resistentes a herbicidas comerciais ou tomates mais saborosos. No entanto, a eficácia de uma dada tecnologia e os benefícios que dela se esperam não são suficientes para legitimar eticamente seu uso disseminado. Legitimar requer também que os OGMs não causem riscos sérios à saúde humana, ao meio ambiente, às relações sociais, às instituições democráticas e à integridade cultural. Em segundo lugar, que não excluam alternativas agrícolas que prometam benefícios mais amplos para a nação como um todo. Os defensores do uso de OGMs na agricultura são a favor da legitimação, insistindo que o desenvolvimento e as várias utilizações de OGMs respondem a um estímulo ético. Para defender esse ponto de vista, eles apontam para os benefícios reais e prometidos. Ao mesmo tempo em que reconhecem que os benefícios dos OGMs atualmente em uso são relativamente modestos, eles acrescentam que os OGMs poderão contribuir para a solução de problemas que afetam áreas empobrecidas do planeta, alegando, com base em futuros desenvolvimentos, que os OGMs irão causar danos menos significativos ao ambiente; aumentarão e tornarão mais eficiente a produção e a distribuição de comida, sendo que este argumento também valeria para safras (como as do famoso arroz dourado) que serão dotadas de nutrientes essenciais. Os defensores da legitimação afirmam que, a menos que essas promessas sejam cumpridas, não haverá como alimentar a população mundial nas próximas décadas. Além disso, ainda segundo esse grupo, não há evidências científicas de que os OGMs (tanto aqueles que estão atualmente em uso quanto os que estão por vir) ocasionem qualquer risco à saúde humana ou ao ambiente que não possa ser controlado adequadamente no contexto de uma regulamentação bem estabelecida. A partir da defesa desse ponto de vista (ou seja, o da ausência de riscos), eles alegam que tanto os agricultores têm o direito de optar pelo uso dos OGMs quanto as empresas de comercializá-los. E, com base na falta de meios alternativos para alimentar o mundo, eles defendem que os OGMs deveriam se tornar uma consideração prioritária das políticas públicas de agricultura em todos os países. Os críticos, no entanto, desafiam cada um desses pontos em favor da legitimação. Eles negam, por exemplo, que a ausência de riscos sérios e incontroláveis já tenha sido estabelecida de modo apropriado pela pesquisa científica. Mas, nem sempre, são sensíveis ao fato de que essa negação está diretamente relacionada com a alegação de que há alternativas melhores tanto para produzir comida que sustente toda a população quanto para atacar o problema da pobreza. Melhor, obviamente, é uma palavra com teor ético e deve ser empregada em um cenário em que há comprometimento com certos valores.
Para os críticos da legitimação, as alternativas são melhores em função de elas contribuírem simultaneamente para tornar mais densos valores como produtividade; sustentabilidade; preservação e manutenção da biodiversidade; integridade cultural e fortalecimento de comunidades locais. Esses valores, defendidos nos quatro encontros do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, Brasil (2001, 2002 e 2003), e em Mumbei, Índia (2004), conflitam com outros, como os da propriedade e do mercado, que dão sustentação às alegações dos defensores de que os OGMs prometem grandes benefícios. As controvérsias sobre os OGMs são marcadas pela polarização sobre os valores. E isso tem impacto sobre os desentendimentos a respeito dos riscos e das possibilidades alternativas. Se há alternativas produtivas suficientes para o uso dos OGMs, então os riscos ganham um novo aspecto; se não as há, então, certamente, riscos maiores devem ser eticamente tolerados. Onde os valores do mercado predominam, haverá pouco interesse nas possibilidades alternativas, e a importância da pesquisa que poderia sustentar a potencial produtividade dessas alternativas estará comprometida. Em contraste, onde os valores (não comerciais) dos críticos predominam, os esforços de pesquisa relacionados às alternativas agrícolas serão priorizados. Além do mais, a diminuição dos valores não comerciais e as práticas agrícolas que incorporam esses valores, bem como a posterior desvalorização da vida dos mais pobres, serão consideradas riscos que precisam ser investigados. Assim, os mecanismos de riscos potenciais propostos para investigação irão incluir não apenas aqueles relativos à área biológica, mas também aqueles que dizem respeito a questões socioeconômicas ligadas ao controle corporativo da maioria dos OGMs e aos direitos financeiros de propriedade intelectual relativos às sementes. Isso reflete que todas as questões que apresentaremos a seguir (e também aquelas similares sobre o potencial produtivo das técnicas agrícolas alternativas) implicam juízo de valores:
O que é um sério risco? Quais são os mecanismos de risco? Qual é o período de tempo apropriado para investigar os riscos? Quais são as evidências-padrão para julgar que um risco não controlável está presente? Quando se pode dizer que evidências suficientes foram obtidas? Quem deve assumir o ônus da prova? Não há respostas científicas neutras para essas questões. Dependendo de que valores (comerciais ou não comerciais) são adotados, as respostas serão diferentes. Isso não significa que a pesquisa científica é irrelevante para responder a essas perguntas. Significa apenas que, seja qual for a pesquisa científica conduzida sobre os riscos, isso, de alguma forma, já pressupõe respostas para essas questões. E, desse modo, ela não pode resolver questões relativas à legitimação. A polarização aparente aqui pode ser confrontada , segundo este autor, ao se reconhecer que há relações dialéticas entre a) os resultados da pesquisa empírica sobre os riscos e as alternativas; b) os padrões de evidência que devem ser utilizados para sustentar esses resultados; c) os valores implicados na percepção do que sejam os benefícios e do que pode estar sob risco. Embora juízos de valores não possam ser derivados de resultados científicos, estes, algumas vezes, fornecem fortes evidências de que certos valores não podem ser mais amplamente incorporados e podem levar a repensar os juízos de valores. Por outro lado, juízos de valores podem motivar a pesquisa científica a priorizar algumas questões mais que outras, ou seja, em vez de questões sobre as possibilidades relativas aos OGMs, priorizar, por exemplo, a questão de como a extraordinária biodiversidade do Brasil pode ser usada para desenvolver safras que, ao mesmo tempo, sejam mais produtivas e auto-sustentáveis do ponto de vista ecológico. Assim, este autor levanta três conclusões: 1) uma reflexão clara sobre a legitimação do uso de OGMs requer entender a crucial interação entre as arenas da ciência e da ética; 2) Há uma necessidade urgente de que sejam feitas mais pesquisas científicas (o que não avalia com antecipação se há ou não papéis legítimos para os OGMs) sobre o potencial produtivo de formas alternativas de agricultura, a fim de que os possíveis riscos relacionados ao uso de OGMs possam, de modo legítimo, ser considerados somente no caso de alternativas menos arriscadas ou mais valiosas não estarem disponíveis
De modo mais geral, julgamentos éticos bem fundamentados sobre os OGMs deveriam responder à questão: Como podemos produzir safras de modo que todos os habitantes de uma dada região de produção ganhassem acesso à uma dieta bem balanceada em um contexto que eleva o bem-estar local, incrementa a biodiversidade, preserva o meio ambiente e ampara a justiça social?; 3) Enquanto o viés científico é essencial para avaliar a legitimação do uso de OGMs, as questões éticas envolvidas vão muito além da competência específica da biologia molecular e da engenharia genética. Conseqüentemente, uma política pública sobre esses temas deveria ser determinada não por comissões dominadas por cientistas que estão envolvidos na pesquisa e no desenvolvimento de OGMs, mas sim por grupos que reúnam tanto a competência científica quanto a diversidade da perspectiva de valores da sociedade como um todo. (Ciência Hoje 203)

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