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2003-10-30
Por Clóvis Cavalcanti
Não se pode negar o mal-estar que existe em toda parte com relação ao empobrecimento urbanístico inescusável de muitas das cidades brasileiras. Empobrecimento, sim, quando se vê, por exemplo, que um percurso de carro entre dois pontos quaisquer de nosso território urbano leva cada vez mais tempo. Ou será que perda de tempo não é sinal de que estejamos perdendo vida, essa riqueza única e insubstituível de todos nós? Pois é o que acontece. Se alguém gasta 8 minutos a mais por viagem e faz duas viagens diárias entre casa e trabalho, isso significa 80 minutos por semana, ou 5 horas e 20 minutos por mês. Para mim, trata-se de uma destruição de riqueza – algo que os moradores Porto Alegre podem muito bem avaliar. Em São Paulo, nesse particular, tem-se um empobrecimento bem maior. O fenômeno, para ser justo, não é somente nosso. Li meses atrás na The Economist que determinado morador de Seattle, nos Estados Unidos, quando construiu sua casa, há três décadas, levava 20 minutos entre ela e o trabalho; hoje leva duas horas!
Constatar que o empobrecimento urbano seja fenômeno comum em certos quadrantes do globo – não o é em outros, como Oxford, na Inglaterra, por exemplo, onde vivi meses em 2000 – não deveria servir de consolo. Pelo contrário, se queremos ter sanidade física e mental, precisamos combater ferozmente o estresse desolador que morar em cidades tem trazido. No caso de Porto Alegre, entristece perceber como o crescimento vertical que nele se verifica, sem maior respeito a princípios de harmonia ambiental e direitos adquiridos, produz empobrecimento. Em muitas áreas da cidade, dói constatar a voracidade com que a especulação imobiliária ocupa a paisagem, desfigurando-a com suas monstruosidades arquitetônicas onde se empilham pessoas na ilusão de que estão residindo em habitações salutares (talvez o sejam com relação à segurança pessoal, mas tenho sérias dúvidas sobre isso). Os espigões não respeitam nada e inegavelmente contribuem para os congestionamentos de trânsito que fazem com que percamos mais tempo – e vida – presos dentro de veículos. Os espigões produzem sombra onde antes batiam raios solares; impedem a circulação desenvolta do ar; isolam as pessoas que, morando em casas, podiam antes se ver e se falar com muito mais naturalidade, construindo laços de agradável vizinhança (como na minha rua, em Olinda, Pernambuco, onde moro).
Nas boas cidades do mundo, é comum a existência de legislação ou de uma cultura política que impede a invasão de grandes edifícios em áreas que não sejam as dos centros urbanos. Em Melbourne, Austrália, existe apenas um perímetro onde os espigões se erguem. Em Paris, em Madri, em Buenos Aires, em Berlim, em Hamburgo seguem-se regras semelhantes. Mesmo em cidades brasileiras, como João Pessoa, medidas se aplicam ao disciplinamento da verticalização arquitetônica. No caso da capital paraibana, um parágrafo da constituição estadual regula o assunto no tocante à praia, proibindo espigões nos quarteirões à beira-mar, mesmo havendo uma avenida ampla à frente das edificações. Lamentavelmente, essa boa prática, merecedora dos elogios das mentes civilizadas, está sendo objeto de ameaça por parte do governo paraibano e aliados dos setores econômicos interessados, que querem derrubar a norma preservacionista do cenário praieiro. Aduzem para isso um discurso desenvolvimentista, que diz que quem se opõe à iniciativa é inimigo do progresso. O mesmo, aliás, que lançam em cima dos defensores do sítio histórico de Olinda, que querem um Alto da Sé completamente restituído a sua configuração original, como nos anos cinqüenta, por exemplo, sem teleféricos, McDonalds e lojas; e com um Horto Del Rey, o primeiro jardim botânico nacional, completamente conservado, sem invasão de projetos modernosos, como se ouve falar que querem fazer ali, por interesses meramente pecuniários.
Esforços que nos devolvam qualidade cênica, que nos dêem sítios agradáveis para a vida na metrópole, que evitem o empobrecimento urbanístico devem ser envidados pela cidadania e, onde o poder público mostrar interesse em levá-los adiante, receber o mais entusiástico apoio. Em Porto Alegre, que visitei há um mês, a luta que se empreende com a adesão do Ministério Público para evitar a deformação dos aprazíveis bairros de Moinhos de Vento, Petrópolis (onde nasceu meu neto mais velho), Higienópolis, etc., por espigões descomunais e desumanizados, é exemplo de luta que merece total apoio da população.
Clóvis Cavalcanti é economista e pesquisador social, Fundação Joaquim Nabuco (Recife)

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