Quando a entrevistei, dois anos atrás, ela me disse que já não chorava. Em algum momento da sua luta contra a Eternit, as lágrimas secaram dentro de Romana Blasotti Pavesi. Passamos uma tarde e uma manhã conversando em seu apartamento em Casale Monferrato. É difícil acreditar à primeira vista que na pequena cidade do Piemonte a tragédia respira entre ruas e paisagens de cinema italiano, nas vitrines das confeitarias onde os krumiris, o delicioso biscoito de Casale, se oferecem a quem passa. Então pessoas como Romana começam a falar. E quando falam enumeram seus mortos. E a narrativa mais uma vez desafina com o cenário do apartamento em que sua solidão é acompanhada por uma população de bibelôs bem ordenados e coloridos, por uma coleção de pequenos elefantes de todas os formatos, origens e texturas – a maioria deles com a tromba para cima, que é como ela gosta. Pergunto a ela se é por significar boa sorte, ela responde que assim parecem felizes. Romana pede um momento, diz com licença, e desaparece no quarto. Volta de lá com uma caixa. De dentro ela tira com a ponta dos dedos um cabelo longo e raro, com diferentes nuances de dourado e vermelho. Bello, molto bello. É de Maria Rosa, ela diz. A filha de Romana foi a quinta de sua família a morrer pelo câncer do amianto.
Romana é a presidente da Associação de Familiares e Vítimas do Amianto de Casale Monferrato. A cidade foi marcada pela fábrica da Eternit instalada lá em 1906. Durante décadas considerada o melhor lugar para um operário trabalhar, até que os primeiros começaram a tombar das doenças provocadas pelo material conhecido também como asbesto. Depois, já não eram os trabalhadores que tiveram contato direto com a fibra, mas moradores que nunca haviam pisado no chão de fábrica. Professores, médicos, jornalistas, profissionais de todo o tipo que habitavam a cidade começaram a morrer de doenças causadas pelo amianto. A contaminação ambiental já havia se consumado e as décadas seriam atravessadas pela tragédia. Romana afirma que mais de 40 novos casos de mesotelioma, um câncer agressivo e fatal causado pelo amianto, surgem a cada ano na cidade.
Casale Monferrato então se levantou e liderou um processo histórico na Justiça italiana contra o bilionário suíço Stephan Schmidheiny e o barão belga Louis de Cartier de Marchienne, este último morto ao longo do julgamento. Stephan Schmidheiny é herdeiro da família que fundou a Eternit suíça e plantou fábricas de amianto por vários países ao longo do século 20, inclusive no Brasil, semeando a morte. Em 1976, ele assumiu o comando dos negócios e, segundo sua versão, teria decidido abandonar a produção com amianto ao descobrir que a fibra causava doenças fatais. A Eternit suíça só saiu das mãos da família mais de uma década depois, no final dos anos 80. O grupo se retirou da produção quando o amianto já tinha se tornado um escândalo de saúde pública na Europa, com milhares de vítimas e pedidos de indenização. O primeiro país europeu a banir o amianto foi a Islândia, em 1983, logo seguida pela Noruega, em 1984. Em 2005, o material foi proibido pela União Europeia. Hoje, está banido de 66 países do mundo, uma lista da qual o Brasil não faz parte. Com a venda das participações do grupo suíço Eternit, todo o passivo ambiental e humano ficou para trás.
Ao longo do processo da Justiça italiana, os promotores revelaram uma teia de centenas de mortos e doentes, a maioria deles de Casale Monferrato. Homens e mulheres contaram como perderam pais, mães, filhos e irmãos de câncer, alguns doentes só tiveram tempo de dar seu depoimento antes de morrer. Além do mesotelioma, a asbestose, conhecida como “pulmão de pedra”, é outra doença progressiva e fatal causada pelo amianto. Neste caso, a inalação da fibra provoca um ininterrupto processo de cicatrização que vai endurecendo o órgão até impedir o movimento de expiração e inspiração. As vítimas de asbestose morrem lenta e dolorosamente por asfixia. No Brasil, era neste momento que empresas como a Eternit despachavam seus representantes para os hospitais para que os operários em agonia assinassem um documento aceitando uma indenização irrisória em troca da vida que acabava, impedindo assim que suas famílias entrassem com ações judiciais após sua morte.
O marido de Romana, Mario Pavesi, já sofria com a asbestose quando começou a sentir a pontada nas costas que anunciava o mesotelioma. Mario era um homem calado, guardava seu mundo dentro de si, e por meses manteve segredo sobre a ferroada persistente. Ele já tinha visto muitos colegas de fábrica terem esse mesmo sintoma e morrerem depois. Um dia, de repente, Mario deixou escapar um gemido. E Romana soube que a atmosfera da casa se alterava de forma inexorável, porque aquele homem não gemia.
Mario tinha ficado órfão aos 16 anos, obrigado a sustentar a mãe e os irmãos menores. Em seguida, a Segunda Guerra incendiou a Europa e ele foi enviado como soldado a uma de suas frentes mais duras, a dos Balcãs. No dia em que ele se materializou diante de Romana, numa ousadia rara para aquele rapaz sério demais, fazia apenas um ano que retornara da Iugoslávia. Eles nunca haviam se falado e Mario já se apresentou com intenções de casamento. Dias depois, assistiram à Ninotchka no cinema. Mario já tinha visto o filme, mas como Romana era louca por Greta Garbo, fez de conta que era sua primeira vez. Casaram-se sete meses depois. Em 1957, já com os filhos Ottavio e Maria Rosa, Mario ingressou na Eternit, onde trabalharia por 20 anos. Quando sentiu a pontada nas costas, estava aposentado. Morreu de mesotelioma na noite de 15 de maio de 1983, aos 61 anos. Pouco antes de morrer, Mario saiu da sua inconsciência e estendeu a mão para Romana. Ela a segurou por um silêncio longo. Depois de uma vida, despediram-se assim. Romana não poderia adivinhar naquele momento que sua trajetória mudaria radicalmente de curso e o homem que amava seria apenas o primeiro da sua família sepultado pelo amianto. Nesse tempo, Romana ainda chorava.
Como as doenças provocadas pelo amianto, como o mesotelioma, têm um longo tempo de latência, em alguns casos décadas, o pico da tragédia de saúde pública acontece às vezes com a fábrica já fechada. A Itália baniu o amianto em 1992, mas ainda hoje lida com o escândalo sanitário. No Brasil, a fibra só é proibida em seis estados brasileiros: Rio Grande do Sul, São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Minas Gerais. Atualmente, o país é o terceiro produtor mundial, o terceiro exportador e o quarto usuário de amianto. Enquanto a fibra vai desaparecendo dos bairros mais nobres das grandes cidades do centro-sul, segue perigosamente farta nas favelas e periferias, assim como nas casas de quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores e indígenas.
Desde as últimas décadas do século 20, o Brasil vem colecionando mortes de trabalhadores, assim como de familiares que tiveram contato com as roupas sujas de amianto, por asbestoses e mesoteliomas. Há várias ações na Justiça buscando banir o amianto do país, assim como indenizações para as vítimas, mas a indústria exibe um lobby poderoso atuando no atual governo, no congresso e no judiciário. As mortes de centenas de brasileiros, a maioria deles operários, e a tragédia de saúde pública que se avizinha com a contaminação ambiental têm muito menos visibilidade do que o bom senso e a responsabilidade pública permitiriam, o que torna a persistência do amianto no Brasil uma caixa-preta ainda por ser totalmente desvendada.
Na Itália, as vítimas e familiares de vítimas levaram o bilionário suíço à Justiça e conseguiram condená-lo em duas instâncias. Em 13 de fevereiro de 2012, Stephan Schmidheiny foi condenado, pelo Tribunal de Turim, a 16 anos de prisão e ao pagamento de 100 milhões de euros. O crime foi descrito como “desastre ambiental doloso permanente e omissão dolosa de medidas de segurança para os operários”. Em 3 de junho de 2013, a sentença não só foi confirmada na corte de apelação, como foi ampliada de 16 para 18 anos de prisão. Tudo indicava um desfecho vitorioso para aqueles que perderam a própria vida ou a vida daqueles que amavam no julgamento de última instância, em Roma.
E então, na quarta-feira, 19 de novembro de 2014, o inominável aconteceu. Diante das vítimas de Casale Monferrato e de outras regiões italianas, a corte italiana anulou a condenação de Stephan Schmidheiny: não por inocência do réu, mas porque o crime teria prescrito. Foi dito no tribunal que era uma opção pelo Direito – e não pela Justiça. “Às vezes o Direito e a Justiça tomam direções opostas, mas os juízes não têm alternativa: eles devem seguir o Direito”, disse Francesco Iacoviello, procurador-geral da Corte de Cassação de Roma. Em comunicado, a Corte afirmou que “a acusação era de desastre ambiental e não de homicídio”. E, portanto, “não poderia ignorar a expiração do prazo de prescrição, que começou a contar a partir de 1986, quando a Eternit fechou suas fábricas na Itália”.
O choque durou apenas um segundo antes do primeiro grito, que logo virou um clamor. “Vergonha! Vergonha! Vergonha!”. Vítimas, familiares de vítimas e moradores da cidade contaminada pareciam feridos de morte. A cena era impressionante. Era para ser uma vitória histórica, que impactaria as vítimas do mundo e contribuiria para a aceleração do banimento do amianto de países como o Brasil. E de novo o poder econômico – e por consequência político – venceu. Para alguns, que observavam de fora, era claro que só poderia ser este o desfecho, já que essa sempre foi a lógica do mundo. Mas, nos últimos anos, os habitantes de Casale Monferrato e todos aqueles que perderam pais, mães, irmãs, filhos na brutal agonia provocada pelas doenças do amianto acreditaram que poderiam alterar o curso da História. “Não é possível que a demanda por justiça prescreva em alguns casos”, afirmou à imprensa Matteo Renzi, primeiro-ministro italiano. “Há feridas que não conhecem limites de tempo.” Em Casale Monterrato, os sinos de todas as igrejas tocaram ao mesmo tempo em sinal de luto. Uma das lideranças da luta das vítimas, Bruno Pesce, anunciou que, na semana em que o príncipe do amianto, Stephan Schmidheiny, venceu, dois moradores de Casale Monferrato morreram de mesotelioma. E morreram derrotados de todas as maneiras possíveis.
Aos 85 anos, Romana Blasotti Pavesi descobriu-se vencida. Sua batalha contra Stephan Schmidheiny não foi a mais importante de sua existência. A morte de quem se ama é sempre a maior batalha perdida numa vida humana. E Romana viu primeiro seu marido, Mario, depois sua irmã, Libera, em seguida sua prima, Anna, o próximo foi Giorgio, seu sobrinho, e por fim, embora nunca se saiba se acabou, Maria Rosa, a filha. Todos mortos por mesotelioma, o câncer do amianto. “Não é vingança”, repetiu Romana. “Nossa luta contra Stephan Schmidheiny é por tudo o que ele representa.” A velha mulher desvia o extraordinário azul de seus olhos para dentro, para o lugar das memórias, e diz: “Não tenho rancor contra o responsável por toda essa tragédia, mas se ele tivesse a possibilidade de acompanhar um doente que lhe fosse caro, do princípio ao fim, talvez ele pudesse entender alguma coisa”.
Foi com a morte de Maria Rosa, na bárbara subversão da lógica que obriga uma mãe a sepultar sua filha, que Romana perdeu a capacidade de chorar. Maria foi o nome que o pai escolheu, Rosa foi dado pela mãe. Maria Rosa nunca trabalhou com amianto. Nas lembranças de Romana, uma a sobressalta. Ela e Mario levando a então pequena Maria Rosa para passear nos arredores da fábrica onde o pai era um trabalhador orgulhoso. Redemoinhos de pó se levantavam do material descartado, era até bonito. E então Maria Rosa, já adulta e mãe de um filho, aparece na casa da mãe: “Estou com mesotelioma”. Ela tinha atribuído a dor nas costas a um tombo ocorrido quando esquiava. A radiografia revelou a verdade brutal. Seu último gesto, em agosto de 2004, foi vencer a fragilidade de seu corpo mastigado pelo câncer para abraçar o filho, Michele, com uma força que ninguém sabe de onde tirou.
Com metade da família amputada da vida pelo amianto, Romana dedicou as últimas décadas de sua existência à busca por justiça. Enquanto ela e seus companheiros de luta se organizavam, a maioria deles carregando atestados de óbitos de familiares e colegas de trabalho, Stephan Shmidheiny levava à frente uma das mais fascinantes e bem sucedidas operações de lavagem de biografia – ou de “greenwashing” – da história recente (leia artigo sobre isso aqui). Logo passou a ser chamado pela imprensa internacional de “filantropo” e, por paradoxal que pareça, de “ambientalista” e “ecologista”. Foi uma das estrelas da Rio-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e criou, entre outras organizações, a Avina, uma fundação dedicada a programas ambientais e de redução da pobreza que atua também no Brasil. Entre as honrarias que lhe foram oferecidas, figuram o título de doutor “honoris causa” em letras humanas pela universidade americana de Yale e a Ordem do Cruzeiro do Sul, concedida a ele pelo então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso.
No site da Avina, o homem levado à Justiça pelas vítimas do amianto como um criminoso socioambiental é apresentado como “pioneiro da luta contra o amianto”. A notícia da anulação de sua sentença pela corte italiana é publicada sob a chamada “desenvolvimento sustentável”. Em posicionamento com data deste mês de novembro, a Avina assim manifesta-se: “(....) contrária a que se continue empregando amianto em qualquer tipo de indústria. Por isso, as autoridades públicas de todas as nações devem normatizar e regulamentar a proibição da produção e uso do amianto, além de desenvolver ações de proteção da cidadania das vítimas por ele afetadas”.
Em sua defesa, o magnata suíço costuma afirmar que desconhecia o potencial destrutivo do amianto. Segundo sua versão, quando soube que a fibra era cancerígena, escolheu abandonar o setor. Em comunicado após a anulação da sentença, porta-vozes de Stephan Schmidheiny afirmaram: “A defesa espera que o Estado italiano proteja Stephen Schmidheiny de futuros processos criminais injustificados e encerre todos os processos correntes”.
Lideranças da luta pelo banimento do amianto, vítimas e familiares contestam a inocência do herdeiro da Eternit suíça apresentando documentos que comprovam que a relação entre o amianto e doenças como a asbestose é conhecida desde o início do século 20. Nos anos 60 do mesmo século já estava documentada a ligação entre a fibra e o mesotelioma. No Brasil, a fábrica da Eternit no município paulista de Osasco foi instalada no começo da década de 40, quando já se conhecia o potencial destrutivo do amianto. Stephan Schmidheiny chegou a fazer uma espécie de estágio na fábrica brasileira, um dos argumentos que usa ao afirmar que desconhecia os males causadas pela fibra. No processo judicial italiano ficou claro que, em 1976, diante das crescentes notícias sobre a relação entre asbesto e patologias fatais, a indústria promoveu uma conferência na Alemanha para discutir estratégias para enfrentar o problema sem deixar de produzir amianto, da qual Stephan Schmidheiny participou.
Segundo as vítimas, ainda que fosse possível aceitar que o desconhecimento sobre o caráter tóxico do amianto fosse de fato real, nada explica o grupo ter vendido a Eternit: uma transação comercial lucrativa que levou à continuidade das operações, ainda que nas mãos de outros donos, como acontece no Brasil e em outros países onde a fibra ainda não foi banida. Assinalam ainda a impossibilidade de justificar o abandono do passivo ambiental e humano consumado enquanto a fortuna da família Schmidheiny era construída. “Stephan Schmidheiny teve na Justiça uma vitória formal”, afirma a engenheira brasileira Fernanda Giannasi, auditora aposentada do Ministério do Trabalho no Brasil, e uma das lideranças mundiais na luta pelo banimento do amianto. “Para o resto de sua vida ele vai ter de conviver com essa marca. Não o deixaremos esquecer nem por um minuto o que ele fez contra a humanidade.”
A voz das vítimas tem muito menos ressonância, porém, do que a poderosa operação de marketing internacional investida na mudança da imagem daquele que consideram seu algoz. O financiamento de ações de caridade e programas socioambientais por Stephan Schmidheiny tem silenciado várias pessoas histórica e profissionalmente ligadas à defesa dos direitos humanos e do meio ambiente no mundo e também no Brasil. É parte da explicação de por que as vítimas do amianto, considerado uma das maiores tragédias de saúde pública da história da humanidade, travam suas batalhas sozinhas, isoladas de parcelas da sociedade que, pela lógica, deveriam lutar ao seu lado.
Romana, como uma personagem shakespeariana, viu-se jogada ao som e à fúria de forças poderosas. Ela, que iniciou a vida trabalhando como empregada doméstica na casa dos mais ricos, teve a ousadia de confrontar um bilionário homenageado por revistas como a Forbes e universidades como Yale. No tribunal, ao ver agigantar-se diante dela o espectro aniquilador da injustiça, Romana só conseguiu encontrar um adjetivo: “Abominável”. Depois, diria: “Estou cansada. Cansada de sofrer e de ver as pessoas morrerem ao meu redor. A decepção dói como eu jamais poderia imaginar.”
Os anos se encurtam diante dela. Mas Romana sabe que, enquanto há vida, a escrita da História ainda pode ser disputada. Deixou a corte amparada pelo único filho que lhe restou, Ottavio. E não chorou.
(Por Eliane Brum, El País-Brasil, 24/11/2014)