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2014-11-26 | Mariano

Em novembro 1978, o lendário músico e ativista nigeriano Fela Kuti se apresentava pela primeira vez em solo germânico, no Festival de Jazz de Berlin (Berliner Jazztage). Antes do show na famosa filarmônica de Berlin, Fela, como de costume, fez um discurso político. Entre as muitas mensagens e provocações, uma das mais contundentes foi: “99,9% das informações que chegam aqui na Europa sobre a África estão erradas”.

Na época o ícone da música africana estava com 40 anos. Um ano antes quase havia sido morto em represália pelo exército nigeriano. Apesar disso, continuava desafiando poderosos e os conselhos de amigos que lhe diziam para cessar suas atividades políticas. “Quanto mais tentarem me calar, mais e mais eu vou falar a verdade, até que eles não possam mais ouvir”.

Passados exatos 36 anos do show revolucionário, a captial alemã voltou a receber uma série de eventos sobre as intermináveis crises de países africanos.

Além de atualizações, as palestras, encontros e diálogos mostram que o discurso de Fela Kuti na filarmônica de Berlin continua atual. Mais, lançam luz sobre o “paradigma das boas intenções”, termo utilizado pelo intelectual norte-americano Noam Chomsky em sua crítica à política imperialista de países ditos desenvolvidos.

No início de novembro o escritor e professor universitário senegalês, Boubacar Boris Diop, veio a Berlin para falar de seu último livro, A Glória dos Impostores (La Gloire des Imposteurs, 2014). A obra, baseada na troca de correspondências com a ativista e crítica do processo de globalização, Aminata Traoré, fala da real situação política e social do Mali, terra natal de Aminata.

O gancho das 230 páginas do livro foi a última interenção militar francesa no país do noroeste africano. Batizada como “operação Serval” em dezembro de 2012, ela foi alardeada como uma necessidade humanitária, devido ao avanço de grupos radicais islâmicos que dominavam o norte do Mali e ameacavam derrubar o governo da capital Bamako.

Diante da plateia de 100 pessoas que o recebeu no salão principal da Universidade Humboldt de Berlin, Boubacar lembrou que essa foi a 49a intervenção militar da França na região desde a independência em 1960. “De fato houve alívio para muitos no Mali, inclusive progressistas, com a chegada dos soldados franceses. Mas dizer que a operação foi um sucesso é desrespeitar a história e os fatos”, ponderou ele.

No evento promovido com o apoio da fundação Rosa Luxemburgo, o professor senegalês foi categórico em afirmar que a mentalidade colonialista européia continua mais viva do que nunca.

Apesar da necessidade real de combater o extremismo, ele afirma que os países africanos de forma geral precisam de reformas mais profundas e apoios sitemáticos se quiserem realmente transformar suas realidades. “Mas não é isso que vemos”, disse ele.

Segundo Boubacar Diop, a verdadeira razão da intervenção francesa foi, entre outros interesses, garantir a exploração das minas de urânio no vizinho Niger. Localizadas próximas à fronteira com o Mali, as minas hoje são um dos principais fornecedores de matéria prima para a gigante nuclear francesa Areva. Um monstro corporativo empregando 45 mil pessoas em 30 países, e faturando 9,2 bilhões de euros por ano.

A situação hoje no Mali é a prova de que o interesse dos franceses passa longe da verdadeira estabilização social e política do país. “Assim como na Líbia, no Egito e em muitos outros lugares da África o que vemos é um país dividido, geografica e socialmente. Grupos de pessoas cometendo represálias mutuamente, e regiões inteiras sem nenhum controle ou influência do Estado Maliense”, afirmou ele.

Nesse contexto, a palavra “terrorismo” vira apenas pretexto para intervenções violentas. A discussão ganha cada vez mais espaco, especialmente entre ativistas e em veículos marginais ao mainstream ocidental. Um exemplo recente ajuda a contextualizar a questão.

Em entrevista à rede Aljazeera sobre imperialismo e intervenções humanitárias, o ex-ministro das relações exteriores francês, Bernard Kouchner, insistiu: “Pacifismo é uma ideia muito boa. Infelizmente ela não funciona”.

Também co-fundador da ONG Médicos Sem Fronteiras, Kouchner porém admitiu pela primeira vez que a França deveria desculpar-se por sua responsabilidade no genocídio em Ruanda nos anos 90. Apesar de ter treinado o exército ruandês, cujos membros participaram do genocídio, a França e nenhum país europeu interveio em Ruanda durante os 100 dias de matança.

Como um dos arquitetos do conceito do “direito de interferir”, ele defende a ideia de que o ocidente tem o dever de proteger vidas humanas, independentemente dos meios e das fronteiras nacionais.

Vale lembrar que tal “direito” também foi usado no fim dos anos 80 pelo governo francês para apoiar o golpe que destituiu e matou o presidente de Burkina Fasso, Thomas Sankara. O golpista que tomou seu lugar, um megalômano chamado Blaise Compaoré, foi finalmente deposto em revolta popular no final do mês passado.

Ao fundo dessa noção de “direito de intervir”, há um conceito velado do que é ser humano, civilizado, correto. Algo parcial, sempre vendido como verdade universal, sem espaço para outras perspectivas. Sob tal ponto de vista, conceitos importantes como “desenvolvimento”, “progresso” e “prosperidade” acabam também instrumentalizados.

No último fim de semana Mwangi Waituru, conterrâneo de Fela Kuti e vice-presidente da ONG Beyond 2015, apresentou sua crítica à forma como países ricos padronizaram a noção de bem estar social. E a usam para impor sua agenda de interesses, fazendo isso com o aval da ONU. Afinal, quem vai ser contra o bem estar? Um desses instrumentos são os chamados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Eles englobam oito objetivos, mensurados em 21 indicadores aplicados de forma homogênea e linear a todos os países.

Para Mwangi Waituru, aplicar uma única medida para todos os contextos gera invariavelmente distorções e outras injustiças. “Nos dedicamos à criação de uma nova agenda de desenvolvimento que considere responsabilidades compartilhadas, mas que respeite as diferentes realidades e capacidades, especialmente históricas”, declarou ele em um diálogo promovido pela Fundação Africavenir e patrocinado pela Prefeitura de Berlim e pelo Ministério para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (BMZ).

(Por Mariano Senna, Ambiente JÁ / Jornal JÁ, 19/11/2014)

 


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