Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma mentiram sobre a hidrelétrica de Belo Monte, a maior obra pública em andamento no Brasil. Essa mentira não vem só. Ela é acompanhada por várias outras, desencadeadas – num intervalo de 13 anos – pelo mesmo detonador: sucessivas – e, às vezes, graves e súbitas – interrupções no fornecimento de energia, os temidos “apagões”.
São acidentes, provocados pela natureza – sobretudo, os inefáveis raios, que caem no Brasil como em nenhum outro país, mas são multiplicados pela imaginação dos interessados nos seus supostos efeitos – ou pelo homem. Do erro, previsível e, por isso, passível de prevenção, resulta outro erro. Provavelmente mais grave.
Áreas e populações cada vez maiores do país estão ameaçadas de ficar sem energia. Imediatamente é apresentada a solução: mais hidrelétricas para aproveitar o potencial da Amazônia, capaz de aumentar em 50% o parque energético nacional em atividade. Duas novas usinas já entraram em operação no rio Madeira, em Rondônia. Jirau e Santo Antônio poderão oferecer ao Sul e Sudeste, onde está o maior consumo, quase tanta energia quanto a que Tucuruí, no rio Tocantins, estava transferindo quando houve o apagão, no dia 4, deixando no escuro populações (talvez 6 milhões de pessoas, na versão oficial subestimada) de 13 Estados e do Distrito Federal.
O maior reforço seria o de Belo Monte. No pique do inverno, como agora, a usina do rio Xingu poderia transferir um volume de energia superior em mais de 70% à potência de Tucuruí, Jirau e Santo Antônio somadas. No verão, porém, a geração pode ficar em zero durante três ou quatro meses.
A vazão do Xingu se reduz 30 vezes entre o auge da cheia e o extremo da vazante. Não haverá água suficiente para acionar as 18 turbinas gigantescas, nem mesmo uma delas, no máximo da estiagem. O projeto original do aproveitamento energético do Xingu previa mais cinco barragens rio acima. Elas produziriam mais energia e reteriam mais água para a maior delas, Belo Monte. O problema é que a área de inundação seria cinco vezes maior do que a de Tucuruí e quase quatro vezes a de Sobradinho, que têm os dois maiores reservatórios brasileiros.
A reação, interna e internacional, foi tão forte que o governo federal voltou atrás. Justamente em 2001, ano do maior apagão, ao qual foi atribuída boa parte da responsabilidade pela derrota do PSDB na eleição do ano seguinte para a presidência da república. Belo Monte passou a ser o primeiro empreendimento elétrico declarado de interesse estratégico para o país.
No dia 17 de setembro de 2001, o presidente do Conselho Nacional de Política Energética da administração FHC, José Jorge de Vasconcelos, assinou o ato que reconhecia a hidrelétrica como estratégica “no planejamento da expansão da hidreletricidade até o ano 2010”, último ano da vigência do plano decenal de energia.
Para que a obra pudesse ser realizada, o governo teria que desistir dos planos iniciais de construir as outras barragens, que provocariam o maior alagamento da história das hidrelétricas. O aproveitamento do Xingu ficaria restrito a Belo Monte. Mesmo nessa usina solitária, o reservatório teria o menor tamanho possível, cobrindo apenas o dobro da área que o rio inunda todos os anos. Seria quase como uma usina a fio d’água, com reserva turbinável apenas no inverno.
Logo os técnicos perceberam que esse esquema não poderia ser usado para uma hidrelétrica que deverá ser a maior do mundo em capacidade instalada. Decidiram criar um vertedouro à margem da calha natural do rio. A água seria desviada para formar esse lago interior através de canais de concreto ou de terra e represada, sendo vertida por um desnível de 90 metros até a casa de força principal, acionando as suas máquinas.
É uma inovação em relação a todas as outras usinas, que segue outra originalidade: o vertedouro principal distante mais de 100 quilômetros da casa de máquinas. Mesmo que esse arranjo funcione a contento, superando o ceticismo e a incredulidade de alguns críticos, nem assim estará assegurada a viabilidade do empreendimento.
As empresas vencedoras da licitação para a concessão logo perceberam que a equação não iria resultar em lucro. Deixaram o consórcio responsável pela geração, a Norte Energia, e foram ocupar suas posições tradicionais, como empreiteiras, no Consórcio Construtor de Belo Monte.
Para preencher seus lugares, o governo colocou as empresas estatais do sistema Eletrobrás, incluindo a própria holding, e os fundos de pensão federais, à frente o Previ, do Banco do Brasil. A estatização de fato foi completada pelo compromisso que o BNDES assumiu de financiar 80% do investimento, mantido mesmo com a triplicação do orçamento. Assim, a construção estaria garantida, mas não a operação.
A Norte Energia funcionaria com prejuízo, que teria de ser reposto pelo governo, porque a energia firme (a média da disponibilidade pelo ano inteiro) continuaria menor do que 40% e abaixo do nivelamento comercial. Seria um sangramento pesado do tesouro nacional.
O apagão do dia 4 surgiu na hora certa para o governo diante desse impasse. Com o alarme nacional e o receio de novas interrupções, a presidente Dilma Rousseff mandou seus porta-vozes anunciarem que o governo vai continuar a construir todas as hidrelétricas projetadas para a Amazônia, inclusive as quatro do Xingu, mesmo que precise passar por cima dos críticos, dos ambientalistas e da própria lei, tornando a política energética um apêndice ditatorial na ordem democrática estabelecida no país.
A conjuntura desfavorável não lhe permitiria alternativa. Ou, dito melhor: o governo prefere partir para cima dos rios amazônicos do que encarar as alternativas. Ainda que para negar hoje o que disse na véspera.
(Por Lúcio Flávio Pinto, Cartas da Amazônia, 18/02/2014)