Mais de dois anos e meio após o acidente nuclear de Fukushima, ainda é difícil decifrar o que realmente está acontecendo no Japão. Faltam dados, informações e especialmente experiência para montar um cenário crível. Algo que nos oriente sobre como essa crise vai terminar. Ou se, pelo menos, podemos continuar a comer peixes capturados no Pacífico Norte, sem medo de sermos contaminados pela radiação.
O histórico do acidente mostra o quão inconfiável é o quadro pintado pelas autoridades e pela empresa (ainda) responsável. Desde 2011 engenheiros, técnicos e executivos do governo japonês, da TEPCO, e até da Agência Internacional de Energia Atômica são exemplo de como agir para desinformar o público. Primeiro não admitindo logo no início que se tratava de um grave acidente nuclear. Depois negando que, desde o primeiro momento, três reatores tinham entrado em processo de fusão.
Pior, só admitiram após serem desmascarados por governos como o da França, e pelo aparecimento de partículas radioativas da usina em todo hemisfério Norte, e detectadas pelas bases de controle da CTBTO.
Quando o acidente estava prestes a completar dois anos e parecia "bem encaminhado", apareceu a notícia de que a água radioativa da usina estava vazando para o oceano. Os encarregados e autoridades se fizeram de louco, falando como se o problema fosse recente e esporádico. Até hoje culpam a chuva, os tufões, o mau tempo, enfim. Mas quem acompanha o assunto, sabe que vazamentos para o mar ocorrem desde o início da crise, há mais de dois anos. E sabe que eles são provavelmente constantes.
Antes achava-se que o mar iria diluir a poluição radioativa para níveis praticamente indetectáveis. Mas pesquisas recentes, tanto no mar quanto na atmosfera, têm confirmado a presença cada vez maior de isótopos radioativos. E não estamos falando de um poluente qualquer, encontrado no mar em volta da usina. Há peixes com Césio-137 de Fukushima sendo pescados em praias da Califórnia.
Exemplo da Ucrânia
Nem os cientistas mais respeitados arriscam a explicar como isso ocorre. "Não temos dados suficientes", dizem em uníssono. Mas é fato que o mesmo ocorreu na Europa depois da explosão de Chernobyl. A diferença é que o fogo atômico na Ucrânia foi apagado em 10 dias, causando 16.500 "mortes extra" pela radiação, segundo estimativas oficiais.
Sobre Fukushima, ainda não há números "confiáveis". Mas tomando em conta o número de dias já passados, a precária condição dos quatro reatores atingidos, o volume de material radioativo envolvido, e os dados da própria TEPCO sobre os constantes e repetidos vazamentos, pode-se concluir com segurança que estamos diante de algo dezenas de vezes pior que Chernobyl.
Ou seja, na medida em que as desculpas se esfarrapam, os encarregados pelo problema inventam novas piruetas e medidas, mas só para dizer que estão fazendo algo, sem conseguir resolver nada.
Pesadêlo atômico
Agora de repente, surge a idéia de remover os bastões de combustível gasto, depositados em uma piscina no prédio do reator 4 (um dos que explodiu em 2011). Em condições normais, de uma usina intacta, esse tipo de operação demora pelo menos três meses. Mas independente do prazo agora, o preocupante mesmo é que essa retirada nunca foi realizada em um reator danificado, cuja estrutura do prédio ameaça ruir, e onde o tal combustível mal e porcamente se mantém estável.
Quer dizer, uma operação que antes era controlada com precisão milimétrica por computador, terá que ser feita manualmente e em condições absolutamente indesejáveis. Alguns especialistas fazem previsões apocalípticas caso algo saia errado.
Os números envolvendo o trabalho ajudam a entender porque. São 1.500 barras de quatro metros de comprimento e com o diâmetro de um dedo polegar cada. São feitas de um composto conhecido como MoX, mistura de Urânio e Plutônio. Pesando um total de 400 toneladas, as 1.500 barras de MoX somam radiação equivalente a 14.000 bombas atômicas, como a que foi jogada em Hiroshima em 1945.
Se algo sair errado na remoção de uma única barra, como por exemplo, ela se romper perdendo a cobertura metálica de zircônio que a envolve, aí então ninguém sabe o que pode acontecer, pois algo assim também nunca ocorreu. E se alguém ainda duvida da gravidade da questão, basta lembrar de Goiânia, onde o Césio-137 de uma única máquina de Raios-X foi responsável por um dos maiores acidentes nucleares da história.
Inoperância consentida
Interessante é ver a opinião do chefe da nação na época do desastre, Naoto Kan, sobre a Agência de Segurança Industrial e Nuclear (NISA, em inglês), órgão regulador do seu próprio país. Foi ela quem autorizou a TEPCO a realizar a proeza da retirada do combustível do reator 4 agora em novembro. "A NISA não conseguia dar nenhuma informação sobre o que acontecia na TEPCO, nem o que ocorria na usina, absolutamente nada", contou o ex-primeiro ministro em entrevista ao jornal Japan Times.
Dito isso, fica realmente muito estranho pensar que, apesar de todas as mentiras e incompetências, a TEPCO continue sendo a única responsável por solucionar o problema. Mais, em se tratando de uma operação sem precedentes na história da engenharia humana, o que explica a forma "privada" como o assunto continua sendo conduzido?
Entre press-releases oficiais e previsões catastróficas, o público deriva da apatia ao pânico. Uma estratégia surrada, que parece pretender apenas alienar as pessoas para aquilo que realmente importa agora: ainda não temos condições técnicas, científicas, sociais e políticas para apostarmos nossas fichas numa atividade como a geração de energia a partir da fusão atômica. Fukushima prova a fragilidade da segurança que o conhecimento técnico-científico nos oferece hoje em dia .
Inevitável falhar
Defensores da indústria nuclear dirão o contrário. Valendo-se de meias verdades, concluirão que o pesadêlo radioativo foi culpa da natureza. Ninguém pode nada contra um terremoto, ou um tsunami. Assim como em Chernobyl o problema foi da incompetência comunista. Querem esquecer uma coisa: todos os reatores são falíveis. Incluse claro, os do Brasil, pousados na beira do mar paradisíaco de Angra dos Reis/RJ.
Falta que mais pessoas repitam até que todas aprendam um fato inegável. Nenhum reator nuclear do mundo jamais operou sem falha, pane, imprevistos, vazamentos etc. A diferença é apenas de escala, entre aqueles eventos que vieram a público, pois sabe-se que a maioria dos problemas fica restrito a círculos de pessoas diretamente interessadas no funcionamento das usinas.
Admitir isso abriria caminho para uma discussão ética e existencial. Para tentar resumir em uma pergunta: até que ponto vale a pena investir para produzir a mais mortífera substância já inventada pelo homem? Independente do porquê ou pra quê, qualquer resposta deve deixar claro o tamanho do risco que estamos dispostos a correr.
Leia mais:
* Japão dá luz verde para "arriscada" limpeza do reator 4 de Fukushima
* Retirada de combustível do reator 4 de Fukushima ameaça criar cenário apocalíptico
Por Mariano Senna, Ambiente JÁ, 06/11/2013)