De 1942 a 1997 a Companhia Vale do Rio Doce foi uma estatal. Vendida em leilão pelo governo federal, a preço de banana, se tornou empresa privada. Nos últimos anos se transformou, de fato, numa multinacional. Nessa condição, ter sua sede no Brasil passou a ser uma circunstância, não uma condição. Como multinacional, passou a agir de olho apenas no seu lucro. Se ele coincide com o interesse nacional, há o casamento. Se não, o divórcio é certo. O resultado é um desastre nacional.
A sua mais grave manifestação é no setor de alumínio. Com enormes sacrifícios e impondo prejuízos ao país, o polo desse metal foi montado entre o Pará e o Maranhão. Subsídio à energia e outras formas de renúncia fiscal atraíram o Japão e algumas multinacionais para essa nova frente de produção, em função da abundância da oferta de energia e das jazidas de bauxita do Pará, que se constituem no terceiro maior depósito desse minério do mundo.
A Vale foi o eixo e o ponto de agregação das associações com o capital estrangeiro nesse empreendimento. Como estatal, ela podia cumprir (na verdade, criava) uma diretriz governamental sobre um setor tão estratégico da economia. Subitamente, a empresa transferiu para a norueguesa Norsk Hydro o controle da fábrica de alumínio da Albras, a oitava maior produtora mundial do metal, a unidade de alumina da Alunorte (líder mundial) e as jazidas de Paragominas, de classe mundial.
A opinião pública não percebeu o atentado, perpetrado três anos atrás. A desatenção tornou mais fácil para a Vale empurrar a transação goela abaixo do país. Alegou, em defesa do seu procedimento, que trocara as ações nas empresas nacionais por um quinto das ações globais da Norsk. Além disso, manteve sob o seu controle a maior das jazidas, a do Trombetas.
Essas alegações estão desmoronando. A imprensa começou a divulgar que a Vale pretende se desfazer da sua parte na Mineração Rio do Norte, e na própria Norsk. Seus 40% na MRN estão avaliados em 800 milhões de dólares. Não foram fornecidos números sobre as ações da multinacional norueguesa.
Foi com a mesma candura anterior que a companhia revelou seu novo negócio. Ela quer se concentrar ainda mais em minério de ferro para dar conta da expansão da demanda da China, que é, de longe, seu maior cliente. A Vale acha que os chineses retomarão o crescimento para poder cumprir seus planos de criação de novas cidades e expansão das já existentes, e assim abrigar os migrantes das áreas rurais. Isto significa busca intensa por aço. O negócio permite altos lucros.
O abandono do setor de alumínio (e qual será o seguinte?), porém, é um golpe contra o Brasil. As razões são as mesmas que conduzem a Vale multinacional pelos seus novos caminhos. A mineração é atividade de base, fundamental. Mas é de baixo rendimento em termos de interesse nacional. Para se tornar realmente proveitosa, requer o prosseguimento pela cadeia produtiva, sob pena de aumentar a dependência brasileira da economia internacional e agravar suas relações de troca.
Essa situação não é o escopo da Vale, que determina sua estratégia pela bússola da rentabilidade. Para ela, negócios concentrados podem se tornar mais vantajosos se consegue, para eles, contratos de grande expressão, como os que tem com a China. Mas isso pode deixar o Brasil ainda mais atrás na competição internacional.
Ao anunciar os propósitos comerciais da empresa, seu presidente, Murilo Ferreira, divulgou dados que mostram que, apesar de o Brasil (e, em particular, a Amazônia) deter cinco das 10 maiores jazidas minerais do mundo e se incluir entre os líderes em investimentos na atividade mineral, a expressão relativa desses números é muito inferior ao tamanho absoluto que é exibido.
O minério de ferro, principal bem mineral brasileiro, corresponde a dois terços (32 bilhões de dólares) da produção mineral nacional, de US$ 51 bilhões no ano passado. A participação da mineração no PIB brasileiro cresceu uma vez e meia na última década, encerrada no ano passado, comparativamente à década anterior, mas ainda é inferior a 3%.
Essa representatividade só é significativa quando aplicada especificamente ao comércio exterior. Só o minério de ferro respondeu por US$ 31 bilhões das exportações brasileiras, de US$ 243 bilhões. A China foi o destino de mais de 45% dessas exportações.
No Pará, quinto maior exportador do país e segundo em saldo de divisas, o peso é ainda mais concentrado: os produtos de origem mineral pesam quase 90% na pauta de exportações do Estado. A questão que decorre automaticamente dessa constatação é: quanto o Pará acrescentaria de valor econômico se as suas exportações fossem de produtos manufaturados e não de commodities?
Não agregar valor ao processo produtivo é o veneno da atividade mineral no Estado — e, por efeito inevitável, no país. Com sua nova política, a Vale está aumentando o veneno que circula nas combalidas artérias econômicas do Pará e do Brasil.
Desde que passou a dispor livremente do enorme patrimônio herdado da estatal, a Vale seguiu um caminho cada vez mais distante dos interesses do Brasil. A empresa cresceu à elefantíase, ingressando em novas áreas de atividade, comprando outras companhias, espalhando-se pelo mundo, incorporando jazidas. Para se valorizar, levou a distribuição de dividendos a uma grandeza de verdadeira orgia. A dissipação de recursos e o crescimento descontrolado a forçaram a assumir uma dívida crescente, hoje batendo nos 30 bilhões de dólares.
O giro de receita não tem sido suficiente para cobrir todas as exigências, e agora, depois do movimento de agregação de ativos e encargos, a Vale vive a etapa contrária, da desagregação. Ao mesmo tempo que tenta se livrar de despesas, precisa fazer caixa para sustentar seu investimento decisivo, na expansão da produção de minério de ferro de Carajás. A empresa está presa ao fluxo de caixa e se desinteressou completamente por qualquer coisa que a limite ou a impeça de alcançar esse objetivo.
Não lhe interessa se, no curso de apenas três anos, o polo de alumínio se desnacionalizar por completo, fazendo que o centro das decisões migre para fora do país. Tudo indica que, como já fez com Albras/Alunorte/Paragominas, a Norsk Hydro adquira a parte da Vale. Para isso ainda precisará eliminar do estatuto da MRN cláusula que impõe o controle nacional da empresa, e uma eventual reação do grupo nacional da família Ermírio de Moraes, que tem 10% das ações da mineradora.
Depois de ter alcançado a posição que conquistou em pouco tempo, a Hydro poderá dar mais esse passo, junto com as demais multinacionais que integram a MRN, para tomar conta dessa parte valiosa da riqueza amazônica. Graças à Vale, e à imprevidência e omissão das autoridades do governo e das lideranças da sociedade.
(Por Lúcio Flávio Pinto, Cartas da Amazônia, 07/10/2013)