Coordenador do Grupo de Trabalho criado pelo governador Tarso Genro para formular o Plano Rio Grande do Sul Sustentável, Francisco Milanez apresentou no dia 9 de agosto os quatro princípios que devem orientar a elaboração desse plano: ser ambientalmente sustentável, socialmente justo, economicamente viável e culturalmente respeitoso. As propostas de ações e políticas apresentadas envolvem as áreas de meio ambiente, saúde, tecnologia e educação. Uma delas prevê o incentivo em alta escala do consumo de alimentos orgânicos no Estado.
Em entrevista ao Sul21, Milanez fala sobre a elaboração do Plano RS Sustentável e um de seus principais objetivos: mudar o atual padrão de produção e consumo que provoca sérios problemas de saúde, como doenças degenerativas, obesidade infantil e adulta, reduzindo a qualidade de vida. “Podemos fazer uma revolução nesta área. Temos condições tecnológicas, físicas e comerciais para fazer uma mudança radical na alimentação da população do Rio Grande do Sul. Não há nenhum sentido em continuarmos nos envenenando”, defende. Milanez também fala sobre a recente saída da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) do Conselho Estadual de Meio ambiente. “Isso está sendo custoso para mim. Exatamente no momento em que entrei para mediar aconteceram estas coisas”.
Em que consiste e como está sendo elaborado o Plano Rio Grande do Sul Sustentável?
Francisco Milanez: Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer que não se trata exclusivamente de um plano no sentido do planejamento tradicional, porque nós não temos tempo para isso. Trata-se, na verdade, de um planejamento que começa com ações. É algo como trocar o pneu com o carro andando. Estou trabalhando para fazer uma integração entre várias secretarias e órgãos do Estado que estão demandando coisas diferentes. Essa é uma construção para uns dois ou três anos, de modo que possamos ter uma base de planejamento geo-referenciada de altíssima qualidade, cuja meta é deixar muito bem definido para qualquer investidor, daqui ou de fora do Estado, o que pode e o que não pode ser feito em cada região e que tipo de investimento interessa ao Estado e em que regiões.
Isso falando em médio e longo prazo. Em curto prazo, estamos começando a implementar ações que são indiscutíveis, sobre as quais não é preciso ficar trinta anos planejando para chegar a uma conclusão. Por exemplo, sabemos que pela revolução provocada nos oito últimos anos pela bio-mineralização, a agricultura orgânica hoje pode ser uma agricultura de massa, em grande escala, com grande qualidade de produtos, inclusive fazendo com que o Brasil deixe de ser um importador de insumos para a agricultura e se torne autossuficiente nesta área. Podemos fazer uma revolução nesta área. Temos condições tecnológicas, físicas e comerciais para fazer uma mudança radical na alimentação da população do Rio Grande do Sul. Não há nenhum sentido em continuarmos nos envenenando. O grande discurso da indústria química dos agrotóxicos sempre foi dizer que esses produtos eram necessários para não faltar alimentos. Hoje, temos todas as condições de produzir alimentos sem agrotóxicos. Não estou falando das commodities, mas sim de alimentos. O que nós estamos discutindo são as formas de acelerar esse processo.
Do ponto de vista das políticas públicas, o que é necessário para tornar essa meta realidade? E o que é exatamente o “curto prazo” neste plano?
Francisco Milanez: Se não dependesse do ser humano, em três, quatro anos poderíamos ter toda essa agricultura convertida no Estado. Isso levando em conta o tempo mínimo de limpeza do solo para que ele volte a ser orgânico. Nesse período, já teríamos alimentos pré-orgânicos, ou seja, criados organicamente, mas com algum nível de contaminação residual do solo. O problema é o ser humano. Aí temos que enfrentar o medo, a resistência, a ignorância, a manipulação da informação e da propaganda. O agricultor é muito abandonado. Muitas vezes, é uma pessoa isolada e seu principal amigo é o vendedor. Então, ele é dependente dos agroquímicos até por uma relação social. Nós precisamos acolher esse produtor e entender as suas dúvidas, o seu medo de mudar, a acomodação, o medo de quebrar e ficar devendo, todas essas experiências pelas quais a maioria dos agricultores já passou. Todo mundo já se atrapalhou na vida com uma safra ruim e ninguém quer repetir essa situação.
Precisamos oferecer uma garantia de compra de produto. Muitos agricultores não sabem, mas nós já estamos fazendo isso por meio da política de compras das escolas. Muitos prefeitos não conseguem comprar produtos orgânicos em suas cidades e acabam importando de outros municípios. Agora, essa informação demora para chegar no agricultor. Em geral, o ser humano tem medo de mudar. Como é que a gente lida com isso? Dando segurança. Aí entram as políticas públicas: precisamos dar assessoria técnica, garantia de compra, reconhecimento da sociedade e informação para que o agricultor é o mais prejudicado no atual processo de produção, muito mais do que nós. Nós comemos alimentos com agrotóxicos. Eles comem, bebem, respiram e absorvem veneno. No passado, sempre foram uma referência de saúde, a imagem do campesino forte, saudável e bonito. Hoje, os agricultores são as pessoas mais doentes da nossa sociedade. É uma coisa muito triste.
Mesmo tomando cuidado, muitas vezes esses produtos acabam indo parar numa nascente cuja água é utilizada para consumo e aí o agricultor não tem como escapar. Ele precisa ser informado dessas questões, precisa saber que pode se libertar optando por uma cultura que é melhor inclusive do ponto de vista econômico, gerando produtos de maior valor. Para isso, é claro, precisa ter assistência técnica, pois é uma atividade mais complexa. Quando aparece um bicho em uma lavoura é muito mais fácil colocar veneno logo, ao invés de descobrir qual é o bicho, como é que se controla, onde está o ponto de ajuste. Nos primeiros anos a agroecologia é um desafio mesmo. Outra coisa que precisa ocorrer é a sociedade dizer que quer esses produtos e vai valorizar quem optar por esse modo de produção.
Existe algum levantamento sobre o tamanho da agroecologia hoje no Rio Grande do Sul? O que ela representa em termos de mercado?
Francisco Milanez: Eu não tenho esse dado, mas é um número ainda muito pequeno, apesar de o Rio Grande do Sul ser o Estado mais estruturado em agricultura orgânica, com uma variedade maior, com produtores de agricultura familiar muito mais disseminados, uma estrutura de assessoria de ONGs e de órgãos públicos como a Emater, que está fazendo um belíssimo trabalho. Então, nós temos uma bela estrutura, mas essa produção ainda é consumida por uma elite. Nós precisamos priorizar aqueles que mais precisam, a população mais pobre. A nossa meta é levar as feiras de produtos orgânicos o mais perto possível dos bairros de baixa renda, pois a população desses bairros tem maior dificuldade de transporte. O ideal, claro, é que elas estejam bem distribuídos pela cidade. O impacto dessa política de estímulo ao consumo de alimentos orgânicos no sistema de saúde tem que ser marcante. Nós temos um ar razoável, a água que consumimos, dentro das atuais condições, ainda é razoável. Uma pessoa com ar, água e comida de qualidade dificilmente ficará doente. A doença, na maioria dos casos, é um desequilíbrio desnecessário, mas ninguém mais lembra isso. Parece que o normal, hoje, é ter alguma doença. Nós vivemos um processo de normalização da perda, da esterilidade, de doenças degenerativas como o câncer. Hoje temos ocorrência de diferentes tipos de câncer em todas as idades. Há 30, 40 anos, não tínhamos câncer infantil como temos hoje. O Hospital de Câncer da Criança está lotado. O índice de câncer de mama nas mulheres está em torno da faixa de um para três. E todo mundo está achando isso normal. É um absurdo completo. A sociedade se acomodou com algo que pode ser evitado.
Uma das ideias do plano é trabalhar essa temática nas escolas. Como isso seria feito? Por meio de uma mudança curricular ou algo do gênero? Já existe algo sendo feito neste sentido nas nossas escolas públicas?
Francisco Milanez: Não. Precisamos trabalhar a educação e também a legislação. Queremos fazer isso por meio do diálogo. Não queremos prejudicar nenhuma indústria. As próprias empresas que hoje vendem agrotóxicos, e que são grandes empregadoras de agrônomos e veterinários, poderiam passar a vender serviços em agroecologia. Elas têm uma estrutura altamente organizada e preparada para isso. Precisamos fazer conversões em vários níveis. Em relação à infância, tem que haver controle e proibição de venda de produtos não desejáveis em escolas. Mas isso não precisa ser feito de forma impositiva. Antes disso, temos que tentar o diálogo com a indústria. A própria indústria pode testar e ver se há mercado para os produtos e valores da agroecologia. Se houver, como acreditamos que há, as empresas terão todo o interesse também. Elas produzem o que produzem hoje porque as pessoas foram acostumadas a comer coisas coloridas e artificiais. Se elas passarem a desejar comidas honestas, a indústria terá que converter sua produção.
Precisamos discutir também o uso de distorcedores de apetite na indústria de alimentos, produtos químicos que estimulam as pessoas a comerem mais do que precisam. Isso não é razoável em uma sociedade democrática. O monoglutamato de sódio, considerado um “intensificador de sabor”, é um exemplo. Além de fazer mal à saúde é um distorcedor de apetite. A obesidade infantil está se ampliando, como mostrou o documentário Muito além do peso. É um sofrimento profundo para a criança, para sua autoimagem e para toda sua família, que pode muito bem ser evitado. Há uma coordenação de forças entre as indústrias da alimentação e da publicidade, frente à qual os pais são impotentes. E não são apenas pais e mães da periferia que são impotentes, mas também pais universitários e mesmo especialistas na área. O fato é que temos pais que trabalham com nutrição e têm filhos com problemas de obesidade.
Outro diálogo que queremos travar com a indústria e com os donos de restaurantes é a adoção de pratos especiais para pessoas com necessidades especiais, como diabéticos, celíacos e tantos outros casos de intolerância alimentar.
Como é que está funcionando esse Grupo de Trabalho do Plano RS Sustentável, que reúne representantes de várias secretarias e órgãos? Qual é a metodologia e os prazos desse grupo?
Francisco Milanez: Temos um grupo executivo reunindo representantes de várias secretarias e órgãos como a Emater, que está reunindo informações sobre as políticas e ações já existentes no Estado e definindo o que cada um pode ser feito para que elas avancem e para que outras sejam implementadas. Também há um grupo que vai pensar o médio e o longo prazo, mas isso é menos emergencial. O que acontece geralmente na administração das secretarias, e é absolutamente normal, é que a gente faz o mais urgente e deixa o resto para depois. Nós estamos tratando de coisas importantes que não podem mais ser postergadas. O Rio Grande do Sul precisa pensar o seu desenvolvimento industrial em uma linha de futuro e buscar investimentos de empresas de tecnologia com visão de futuro. Para isso, precisamos criar um ambiente educativo, informativo e técnico capaz de atrair essas empresas. Nos interessam as empresas que também querem um ar de qualidade e uma água de qualidade. As outras não queremos. Precisamos sinalizar isso. E precisamos administrar os recursos que nós temos. O carvão é um problema, mas também é uma enorme fonte de energia. Nós temos quase todo o carvão do Brasil. Santa Catarina tem um pouco e nós temos o resto.
É possível explorar essas reservas de carvão sem causar danos ambientais?
Francisco Milanez: Estamos chegando perto disso, mas a pressão hoje é para usar carvão da pior forma, e não concordamos com isso. Não há porque se usar o carvão de uma forma poluente se ele pode ser destilado e utilizado com muito menos impacto ambiental. É que nem o caso da celulose. Nós utilizamos papel, mas ele pode ser produzido sem dióxido de cloro ou outras substâncias utilizadas para branqueamento e que acabam liberando dioxinas, que são os elementos mais tóxicos que existem.
Nós estamos procurando construir uma agenda positiva. Não adianta só criticar, sem apresentar uma alternativa plausível. As pessoas precisam viver. O agricultor precisa ganhar, alimentar sua famílias e educar seus filhos. Para que as coisas mudem, precisamos apontar alternativas viáveis também no curto prazo.
O dossiê do nosso grupo será o que fizermos neste período. Estamos apontando também algumas coisas de médio e longo prazo, como a necessidade de se ter um referencial comum de geoprocessamento. A Fepam hoje exige os estudos que são necessários, pela simples razão de que não eles não existem. Se existissem, ela não precisava exigir e poderia dizer o que pode e o que não pode ser feito em uma determinada área. Se eu conheço o meu meio ambiente, posso dizer qual será o impacto desta ou daquela atividade econômica.
Queremos agir também na área da energia, em especial na democratização da produção da energia. Já temos condições tecnológicas para que as pessoas produzam sua própria energia por meio de células solares, turbinas eólicas, telhados verdes. A energia solar vai disparar nos próximos. Nós temos aqui em Porto Alegre uma tecnologia de energia solar de boa qualidade, desenvolvida na universidade, que não deslancha. Ao invés de importar dos chineses, nós podemos produzir nossas próprias células solares, com mais garantia e segurança. Não tem cabimento hoje fazer aquecimento de água com outra coisa que não seja energia solar. No limite, podemos pensar em ter uma casa autossuficiente em termos de energia e ainda ter algum lucro com um excedente de energia.
Nós temos um grande problema a enfrentar no campo da informação. A maior parte da informação que circula hoje é propaganda, em suas mais variadas formas. Como é que alguém escolhe um carro hoje? A imensa maioria da informação disponível é superficial, quando tem alguma informação. A sociedade precisa ter alguma referência de informação que seja confiável. A ideia de índice de sustentabilidade pode virar uma arma poderosa. Essa ideia inclui não só as questões de meio ambiente, mas também as de justiça social. Uma alface pode ser orgânica e produzida explorando pessoas. Mas ela não é sustentável se ela é obtida mediante exploração. Então, justiça social e respeito cultural são acréscimos importantes ao conceito de orgânico. Não basta ser orgânica, precisa ser sustentável também.
Como está a relação com as entidades ambientalistas neste trabalho de elaboração do Plano RS Sustentável? Houve esse episódio recente da saída da Agapan do Conselho Estadual de Meio Ambiente. Qual sua avaliação sobre esse momento?
Francisco Milanez: Isso está sendo custoso para mim. Exatamente no momento em que entrei para mediar aconteceram estas coisas. Mas para mim não é problema, até porque adoro levar pedrada, não gosto de jogar pedra.
Está levando pedrada agora?
Francisco Milanez: Algumas. E vou levar muito mais. Porque minha ideia é acelerar. Nós vamos fazer uma chamada de experiências de sustentabilidade no Estado. Nós não estamos reinventando a roda, queremos pegar essa massa de conhecimento e socializar por meio de um banco de dados na internet. A ideia é oferecer experiências para que as pessoas possam adaptar de acordo com sua própria realidade.
(Por Marco Aurélio Weissheimer, SUL 21, 19/08/2013)