Morre um índio e o ministro chama a tribo à Brasília, apenas para matá-los pela segunda vez. Se não há mais o que fazer para evitar a morte física, que ao menos se evite a morte simbólica, pois essa é para sempre.
Um índio morreu e 14 ficaram feridos durante confronto com a Polícia Militar do Mato Grosso do Sul. A morte ocorreu durante uma operação de reintegração de posse determinada pelo Poder Judiciário. Quatro policiais ficaram feridos, segundo nota do governo do estado. O ministro da Justiça determinou à Polícia Federal que abra imediatamente um inquérito para investigar a morte do índio.
Esse texto enfadonho, atemporal e com cara de pizza amanhecida, foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação na quinta-feira passada (30/05). Eu vi a notícia pela televisão, recordo que me causou um desconforto, algo como um acúmulo de gases na região abdominal. Nessas horas, não há o que fazer. É preciso liberar a tensão.
Foi o que eu fiz. Soltei um sonoro suspiro e parti para a notícia seguinte, os preparativos da seleção brasileira visando a Copa das Confederações. Mas o que era para me aliviar só aumentou a sensação de gases acumulados. Eu não sei o que passa pela cabeça de Felipão e isso me preocupa, ele não é mais o mesmo depois do Palmeiras.
As más notícias se acumulam. Aécio Neves declara que o país está à beira do precipício; Jabor diz que os médicos cubanos vão destruir a moral brasileira, quiçá o pais inteiro; Morre o Roberto Civita e o Ruy Mesquita, baluartes do livre pensamento; Guido Mantega diz que vamos crescer, um dia, e que crescer é bom.
Mudo pra a TV Band. Está lá a filha do ministro, Marina Mantega, no programa Papo de Cozinha. A entrevistada de Marina Mantega é a cantora Wanessa Camargo. Tema da conversa: o governo está fodendo com os povos indígenas.
Desculpe. Ato Falho. Tema da conversa: como Wanessa Camargo se alimenta durante a intensa rotina de turnês. As magras estão sempre certas. Não dá pra conversar sobre índios mortos em papo de cozinha. Wanessa Camargo resolve cantar. Desligo a televisão e vou pro “feice”.
A morte do índio. José Eduardo Cardozo, com cara de Corpus Christi, promete rigor e avisa que será implacável e que em 30 dias a Polícia Federal apresenta o resultado do inquérito, apontando culpados, se houver. O corpo de Oziel ainda está quente quando é dada a notícia final: na impossibilidade do ministro ir ao Mato Grosso, os índios vão à Brasília para uma audiência. Em Brasília, poderão apresentar suas reivindicações, que serão levadas em conta pelo governo, que fará de tudo para atendê-las.
O governo promete fazer de tudo para resolver o problema indígena no Mato Grosso do Sul. É quando começa a segunda morte de Oziel Gabriel Terena.
Uma morte ainda mais dramática, pois simbólica, fruto de uma operação genocida financiada, acobertada e estimulada pelo Estado brasileiro. Operação que está em curso, hoje, no Mato Grosso do Sul, tendo a etnia Guarani Kaiowa como o exemplo mais acabado.
Não tendo solução economicamente lucrativa para os povos indígenas do Mato Grosso do Sul, se opera sua eliminação enquanto povo. Se opera uma ação genocida. Por isso, não há o que fazer em Brasília. Morte aos índios!!
Chorar um corpo estendido na mesa de necropsia é um ato egoísta. É um gesto distorcido pelos valores inventados pela banda podre do cristianismo centro-europeu que aqui chegou no século 14. Meteram isso na cabeça dos índios e agora também eles choram a morte de Oziel.
E vão à Brasília para a segunda e definitiva lamúria: a morte simbólica, a morte cultural que antecederá novas e infinitas mortes físicas, até que todos tenham tombado, seja no campo de batalha, seja no álcool, seja na religião. O que importa é que morram como cultura, como povo, abrindo espaço para o desenvolvimento, progresso, crescimento, crescimento, crescimento.
O índio brasileiro não tem nada mais a fazer em Brasília. Depois de 500 anos de barbárie, não há mais o que conversar. Não há mais o que reivindicar. O ministro sem tempo para viajar que vá ao Mato Grosso, pois é lá que está o centro do conflito, não em seu gabinete. É no Mato Grosso do Sul que está o problema. Discussão de gabinete é guerra perdida.
Há um genocídio em curso. Ir à Brasília apertar a mão de ministro é sujar-se com o próprio sangue. Não há mais o que explicar, o que “reivindicar”.
Há duas coisas que o sistema capitalista neoliberal não suporta. A primeira delas é o silêncio, o fim do diálogo, o fim da ideologia. Por isso Ocupe Wall Street foi tão emblemático. Não havia diálogo, não havia reivindicação, apenas o protesto pelo protesto. Isso, o sistema não absorve: “mas afinal de contas, o que eles querem?”
A segunda coisa que os capitalistas não suportam é a resistência bunkerizada em torno de um ideal, até a morte, sob qualquer circunstância. Foi assim na ocupação da CSN nos anos 80, para citar um exemplo. Se não há mais o que fazer para evitar a morte física, que ao menos se evite a morte simbólica, pois essa é para sempre. Ir à Brasília é morrer duas vezes.
(Por Marques Casara, 02/06/2013)