O sol do meio-dia é o horário mais insalubre em Mato Grosso, principalmente em agosto, período de intensa seca e queimadas. No distrito de Chumbo, em Poconé, a apenas 100 quilômetros da capital do estado, trabalhadores com facão na mão, rostos sujos e roupas rasgadas tentam se proteger do sol que arde sob suas cabeças. Alguns se abrigam numa fresta de sombra ao lado do precário ônibus que os trouxe para o canavial, outros improvisam cabanas feitas com canas. Sentados, eles dividem a pouca água que tem e aguardam esperançosos que a marmita do dia chegue.
O grupo veio de Alagoas, dormem num alojamento apertado no Chumbo, sem condições sanitárias adequadas e estão há quatro meses sem receber salário. Não têm dinheiro para voltar para onde vieram. Cansados, sujos e com fome eles avistam quatro caminhonetes 4×4 se aproximarem levantando poeira por uma estrada vicinal. De dentro do ar-condicionado saem fiscais do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego (SRTE), policiais armados do Grupo de Operações Especiais (GOE) e um grupo de repórteres e cinegrafistas com microfones e câmeras.
As vítimas trabalham na Alcopan – Álcool do Pantanal Ltda, que já responde por diversos procedimentos e ações perante o MPT e a Justiça do Trabalho em razão de irregularidades trabalhistas. A empresa encontra-se em recuperação judicial desde 2009 e acumula dívidas de 150 milhões de reais. Mesmo diante desse quadro a empresa continua a trazer trabalhadores do Nordeste para fazer girar as engrenagens da usina que produz atualmente 20 milhões de litros de álcool vendidos nos postos do estado.
Segundo a promotora de Justiça Maria Fernanda Côrrea da Costa, o impasse na Alcopan é um claro exemplo do mau uso do mecanismo de recuperação judicial. “A empresa se apropria do trabalho dos empregados, produz álcool e vende no mercado. Quando indagada sobre o pagamento de seus débitos atuais, diz que, por conta da recuperação judicial e em razão da decisão judicial, seus bens e valores estão bloqueados pelo Juízo e nada pode fazer. Ou seja, a empresa se aproveita do espírito da Lei de recuperação judicial para atuar à margem da lei.”
O contador da Alcoopan, Elias Gomes, defende a empresa. “Não há trabalho escravo aqui. Esses auditores gostam de plantar o terrorismo. O que há é um mero atraso de pagamento de salário por falta de recursos”. Para ele a culpa da situação da Alcoopan é do Banco do Brasil, que não libera o dinheiro bloqueado: “São oito milhões de reais que estão bloqueados na justiça, com esse dinheiro poderíamos pagar todos os trabalhadores, mas o Banco do Brasil, através das decisões do desembargador Orlando Perri, prefere comprometer esse recurso com outros credores que não os trabalhadores”.
“Não há dúvida que estamos diante de um quadro de trabalho escravo”, diz o procurador Rafael Garcia. Para ele a empresa age de má fé ao trazer trabalhadores de outros estados sem oferecer condições de pagar seus salários. “Isso deixa a esfera da responsabilidade trabalhista e a empresa passa a agir com verdadeiro dolo com a finalidade única de conseguir o máximo de lucro. A forma como ela obtém isso é não pagar a sua mão de obra”. O procurador ainda critica a recuperação judicial: “Esse mecanismo é fruto de uma lei com o objetivo maior de proteger o capital e o empresário em detrimento dos trabalhadores. É uma situação completamente sui generis onde a empresa transforma uma oportunidade numa mescla de ilegalidade”.
Na quinta-feira 23, a juiza titular da 4ª Vara Cível de Várzea Grande, Anglisey Solivan de Oliveira, decretou a falência da Alcopan.
O que costuma atrair mão de obra do Nordeste para Mato Grosso é o título de maior potência agrícola do país. Todos os trabalhadores entrevistados pelos auditores disseram ter ouvido sobre ótimos salários e bons empregos no estado. “Nunca ia imaginar que ao chegar aqui me depararia com algo assim”, diz Jailson Cassimiro da Silva, que deixou a família em Alagoas e veio para Poconé atrás de melhores condições. “Agora não tenho dinheiro pra enviar pra minha família nem condições de voltar para casa”.
A potência do agronegócio é também a que mais tem empresas na lista suja do Ministério do Trabalho; são 28, o que corresponde por quase um quarto do total. Dentre os tipos de empreendimentos a que mais recorre ao trabalho análogo à escravidão é justamente o sucroalcooleiro. Em seguida vem a pecuária, construção civil e lavoura agrícola.
(Por Thiago Foresti, Carta Capital, 28/08/2012)