Em três dos 10 anos em que presidiu a antiga Companhia Vale do Rio Doce, entre 2001 e 2011, Roger Agnelli manteve uma guerra de guerrilhas com o governo do PT. A incompatibilidade foi transmitida por Lula a Dilma Rousseff. A queda de braço foi vencida pelos petistas, depois de um “chega pra lá” no Bradesco. No final de abril de 2011, quando seu mandato encerrou, Agnelli não foi reconduzido à direção da maior empresa privada do país, a segunda mineradora do mundo. Nesse mês escrevi o seguinte:
Murilo Ferreira, que vai substituí-lo não deverá discrepar do padrão estabelecido para o ocupante do cargo. O Bradesco, que colocou Agnelli no topo da Vale, precisou ser convencido de que era melhor para todos encerrar essa permanência.
Ela já era longa para os padrões do capitalismo de mercado brasileiro (por mercado, entenda-se: com ações para valer na bolsa). Em compensação, o banco – que perdeu a hegemonia no setor financeiro para o Itaú, depois que a corporação dos Setubal engoliu o Unibanco, dos Moreira Salles – ficou com as cartas da sucessão.
Os petistas sustentam que a exigência da mudança não foi motivada por simples antipatia. Não faltavam motivos para considerar Agnelli antipático: sua arrogância, insensibilidade para os aspectos humanos nas relações de trabalho, inflexibilidade na condução da mineradora e de espírito autoritário conquistaram inimigos.
Mas o conflito com o governo teria como causa a integral adesão dele a uma política de exportação de commodities e de perigosa dependência do mercado asiático, sobretudo da China. Seria uma incompatibilidade de visões do processo econômico e do desenvolvimento.
Há quem acredite na versão. Mas ela dificilmente resistirá a uma confrontação com os fatos. Quando a fritura e as alfinetadas já se tornavam maciças, sem sutilezas, Agnelli, talvez estimulado pelos ares do exterior, onde se encontrava, desabafou: o que os petistas queriam era a sua cadeira (e várias outras abaixo dela) para empregar “companheiros”.
Com essas palavras, o presidente da Vale entregou sua cabeça ao cutelo, mas não deve ter agido impensadamente. Sua sorte estava selada, independentemente do que ele fizesse. E ele bem que tentou se manter, cultivando a simpatia de Lula através de favores pessoais ao presidente e sua família, e atendendo a algumas das reivindicações por ele endossadas, como a siderúrgica de Marabá, um projeto de tal complexidade que até hoje, à diferença de todos os demais dos quais a Vale participa, permanece sem sócio.
Diz-se que o presidente decidiu se livrar do seu novo “amigo de infância” quando ele, nas primeiras ondas da crise financeira internacional de 2008, demitiu 1.500 funcionários, justamente quando o governo gastava muito (inclusive além da prudência e do bom senso, não propriamente pelo alto valor da soma, com sérios reflexos sobre o caixa do tesouro nacional, mas, sobretudo, pelo destino dado ao dinheiro público) para não deixar que o Brasil mergulhasse numa crise mais profunda.
Acredita nessa justificativa quem espera pelo Papai Noel nos natais. Depois dessas demissões a Vale contratou várias vezes mais pessoal e ampliou seus investimentos, tanto no exterior como ainda mais no Brasil. Nada disso mudou a direção do processo econômico, com dependência crescente dos produtos primários, a maioria deles recursos naturais não renováveis, preponderando sobre os bens industrializados. E uma abertura desmedida ao comércio internacional, sem contrapartidas adequadas.
A Vale, porém, nunca esteve só nessa política. Ela tem sido apenas a principal integrante da comissão de frente que, de várias maneiras, encheu o mercado interno de recursos captados no exterior, em operações de compra e venda ou empréstimos e financiamentos. Só assim o governo Lula e, agora, a gestão da sua sucessora, dispuseram de dinheiro à larga, como “nunca dantes” no país, para promover um excepcional crescimento do consumo. É sintomático que as compras aquecidas não se tenham refletido nos indicadores do desenvolvimento realmente consolidado, ou sustentável, como diz o jargão.
Se a divergência entre o governo e a Vale fosse de fundo, nesses três anos de intrigas, vicejando por debaixo de uma aparência de cordialidade, o Palácio do Planalto e seus satélites teriam promovido uma discussão pública em torno do papel tipicamente colonial que a Vale tem desempenhado.
Esse debate também podia ser travado dentro da empresa, nos seus colegiados. Ao contrário, a hostilidade acontecia nos bastidores, à distância da opinião pública, do início ao fim, em encontros sigilosos e em manobras sorrateiras – de ambos os lados, diga-se.
As características desse processo decisório deixam à mostra o estranho perfil de uma companhia tão poderosa como a Vale. Ela é uma empresa privada, mas o governo detém a maioria do capital votante. Essa maioria, contudo, não é suficiente para impor decisões fundamentais, como a substituição do presidente da corporação, que só pode ser tomada por maioria de 75% das ações ordinárias. Para completar esse percentual, o governo precisa do apoio do Bradesco, que é dono de 21%,
Pelas regras da privatização da Vale, feita em 1997, o Bradesco não podia ser seu acionista porque foi o responsável pela modelagem da venda. Nem a Mitsui, por sua condição de cliente da mineradora. Mas ambos participam do controle acionário. Têm poderes suficientes, nessa condição corporativa, para se manterem imunes às pressões governamentais, mas estão sujeitas a elas por causa dos seus interesses maiores. Por isso podem ser alcançados pela mão invisível do aparato estatal. Raras empresas – das imensas às pequeninas – têm autonomia bastante para resistir a essa interferência.
Se o jogo fosse limpo e visasse o bem coletivo, o governo agiria às claras e usaria a ação especial que possui, a golden share, para corrigir os rumos desviados da mineradora, o que nunca fez. Os atritos entre a Vale e o governo resultaram em ajustes, como o incremento da produção de chapas de aço, ao invés de apenas minério.
Mas essas mudanças estão contidas no escopo do modelo de desenvolvimento à base de exportações crescentes de matérias primas, com preços elevados em função de circunstâncias específicas do mercado e do uso intensivo de energia. Seria o suficiente para o acerto de contas com um executivo manda-chuva, que se tornou um dos mais bem sucedidos em todo o mundo e na história brasileira.
O saldo da saída de Roger Agnelli é positivo. Poder tão grande, usufruído por tanto tempo, gera vícios e distorções. Mas sua saída é daquelas que, tudo mudando, nada muda. Exceto para dar razão ao executivo: a sua cadeira (e várias outras dela decorrentes) era a fonte da cobiça, não o corretivo aos seus erros. A Vale continuará a crescer como um ser híbrido, quase um monstro.
(Por Lucio Flavio Pinto, Vale q Vale, 19/07/2012)