Celular e câncer: um alerta
Além de não cumprir a lei sobre as antenas, as operadoras fazem de tudo para esconder dos usuários os verdadeiros riscos do uso inadequado do telefone celular. O maior perigo são as crianças, muito mais sensíveis à radiação. A Organização Mundial da Saúde já reconheceu que essas radiações podem estar relacionadas a casos de câncer.
Nesta entrevista, o professor de engenharia elétrica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Álvaro de Almeida Salles, fala das pesquisas que apontam os efeitos nocivos das radiações emitidas pelos atuais aparelhos. Sobre a polêmica suspensão das vendas de linhas de celular, ele diz – “a Lei de Porto Alegre é a melhor do país, o que é necessário são investimentos das operadoras para melhorar o serviço”.
Estão comprovados danos à saúde devido à radiação de aparelhos celulares?
Salles - A Organização Mundial da Saúde (OMS) já declarou que essas radiações são possivelmente carcinogênicas (podem causar câncer). O grupo de trabalho da OMS classificou as radiofrequências (campos da telefonia celular, wifi, Bluetooth, etc) como possivelmente carcinogênicas, grupo 2B. Saiu na The Lancet, a revista científica mais importante do mundo, em junho de 2011. Com isso, as operadoras não têm mais argumentos para dizer que não há risco. É claro que alguns pontos são ainda polêmicos, mas os estudos indicam que há danos, sim. Só isso, sozinho, já é base para se adotar o princípio da precaução nessas questões.
O que significa 2B?
Salles - É a classificação internacional de doenças para oncologia. É quando há evidências de danos, tanto em humanos quanto em animais de experiência. As empresas argumentam que nessa classificação 2B está também o benzeno e o nosso cafezinho. O perigo é que tem gente que, por exemplo, dorme com o celular ao lado da cabeça - e fica ali recebendo aquela radiação. Imagina se você passa seis ou sete horas cheirando benzeno ou tomando cafezinho.
O que deve ser feito?
Salles - Não há alternativa– é adotar o principio da precaução e reduzir o mínimo a exposição. Eu acho que tem duas questões fundamentais: 1)Divulgação ampla para as pessoas passarem a usar o celular somente com fone de ouvido. O caso mais grave é o celular encostado na cabeça - de todas as questões é o mais perigoso. A irradiação que você recebe é muito grande. 2) Campanha ampla e exigência das operadoras que façam uma quebra de paradigma, para o uso correto do celular.
Como assim?
Salles - Hoje usa-se o celular pra tudo. Tem gente que não tem mais telefone fixo. Se você estiver em casa ou no escritório use linha fixa, além deter o risco da saúde diminuído os custos também são menores. Só usar o aparelho móvel quando você está se deslocando e sempre com fone de ouvido.
Tem que haver uma mudança cultural, mas para isso é preciso um choque.
O senhor citou o principio da precaução, o que é?
Salles - É simples, diz que na ausência de maior evidência científica em determinadas questões que tenham abrangência para a população deve ser adotado o princípio da precaução. No caso seria exatamente isso: recomendar para as pessoas o uso dos fones de ouvido, usando o móvel o menos possível.
Mas existem pesquisas que apontam riscos a saúde?
Salles - Sim, na Suécia, o grupo do doutor Lennart Hardell, neurocirurgião da Universidade de Orebro, realiza pesquisas independentes que já demonstraram várias vezes o perigo. Inclusive essa classificação de 2B “possivelmente carcinogênico”, em grande parte foi baseada no trabalho dele. O pesquisador que há mais tempo estuda isso, o Dr. Om Gandhi, inclusive esteve em Porto Alegre em 2009. Ele já mostrou que a cada milímetro que você afasta o celular da cabeça a exposição dos tecidos do seu cérebro decai de 10 a 15 por cento. O fator distância é muito importante – por isso devemos usar sempre o fone de ouvido. Outro cientista importante é o doutor Henry Lai, foi quem mostrou primeiro os efeitos de baixo nível. Ele demonstrou a quebra simples e dupla da molécula do DNA. Exposta a essas radiações, em níveis até abaixo das verificadas em celulares, a molécula pode sofrer mutação e essa mutação leva a um princípio de degenerescências, ou seja, câncer. O estudo do doutor Lai foi publicado em 1994.
Mas não é só este efeito, existem outros, como os estudos sobre a Alteração da Barreira da Massa Encefálica. As radiações em nível de celular e abaixo delas causam alterações nessa barreira (que é uma espécie de filtro, que protege as células mais sensíveis, como os neurônios) e alteram as propriedades permitindo a entrada de toxinas que podem causar degenerescência.
As evidências são muitas. A única coisa que não pode ser reclamada é que a ciência não mostrou o problema. O que pode cobrar é que a ciência não teve efetividade e espaço suficiente para divulgar as informações.
Por que a radiação dos aparelhos é a mais perigosa?
Salles - Esse tipo é classificado de alto nível. São chamados efeitos térmicos, de curta duração. Aproximando-se o celular na cabeça já há um aquecimento no cérebro. São efeitos imediatos, que ao se prolongarem por muito tempo trazem graves riscos.
O outro tipo de radiação (emitidas pelas ERBs) é baixo nível por longo tempo. Por exemplo, a pessoa que mora ou trabalha perto de uma estação de rádio base. A exposição em termos de nível é baixa, mas já esta provado que baixa intensidade e exposição por longo tempo também causa problemas.
Se você mora ou trabalha perto de uma ERB, ficando várias horas por dia exposto, poderá ter problemas de saúde. O celular é campo próximo. Campo distante é wireless, estação de rádio base, etc.; tudo isso é baixo nível por que é campo distante.
O grande problema é que a maioria dos casos sérios, causados tanto por exposição de baixo nível quanto de alto nível, que são os tumores, tem um período de latência de oito a dez anos. Então é uma bomba de efeito retardado.
Em relação às antenas, há estudos sobre possíveis danos a saúde pela radiação?
Salles - Já existem pelo menos duas pesquisas. Uma na Alemanha, na cidade de Naila, mostrou que os habitantes de um raio de até 400 metros ao redor das ERBs tinham a probabilidade três vezes maior do desenvolvimento de vários tipos de tumores, câncer de mama, etc. Essa pesquisa foi feita por dez anos, e encomendada pelo governo alemão. Outro estudo, em Betânia, Israel, teve o raio um pouco menor, cerca de 250 metros. Como o raio era menor o risco se mostrou maior - em vez de 3 foram 4,5 maiores. São poucas as pesquisas, mas elas indicam que existem problemas.
E as crianças?
Salles - As crianças são muito mais suscetíveis. E está acontecendo que em sala de aula há o uso do sistema wireless. Ali se coloca uma criança com outras 30, cada uma com seu laptop, com isso o nível de potência é aumentado. Fica-se num ambiente duas, três horas onde o risco para a saúde da criança é muito grande. Os alunos estão sendo cobaia de uma tecnologia que ainda não se mostrou inócua à saúde humana.
Eu fico indignado que ainda hoje fiquem usando esses laptops em sala de aula. Com o wifi. Os alunos podem estar sofrendo problemas que vão se manifestar daqui a alguns anos. E aí? Num adulto a penetração é pequena, numa criança de 10 anos é quase a metade. Numa de cinco anos e mais da metade do cérebro.
E os novos aparelhos, como Iphone, etc?
Salles - Tudo é a mesma coisa, encostou na cabeça está errado – outro problema sério é aquele negócio do Bluetooth – e baixo nível – mas usa-se muito próximo do ouvido – é um absurdo, deve ser evitado.
E as notícias que dizem que não há riscos?
Salles - Muitas vezes saí no jornal resultado de pesquisas que duraram um ou dois anos. Aí não aparece nada e sai a manchete: “Celular não dá câncer”. Mas isso é pura propaganda, porque pesquisas completas são muita caras e demoram muito mais tempo (no mínimo 10 anos), por isso são poucas.
Por que não há divulgação?
Salles - Não é simples dizer, mas a resposta vem de uma pessoa que trabalhava numa dessas empresas. Ela me disse assim - nós não podemos divulgar nada, se não as pessoas vão perguntar o porquê? E aí então vai começar a haver um temor e os usuários vão acabar falando menos no celular...
O que poderia ser feito?
Salles - Por exemplo, a doutora Devra Davis, pesquisadora americana de renome internacional diz: estão esperando o quê? Precisam de cadáveres? Só que eles na verdade já existem. De 2008 pra cá ela tem se interessado muito por essas questões e veio para Porto Alegre em 2009, para participar do seminário internacional que houve no Ministério Público. Na ocasião, ela mostrou a capa da revista TIME com um médico fumando cigarro. Ele era o chefe da sociedade americana de câncer em 1954. E depois foi trabalhar numa indústria de cigarro. Aquela Times dizia – Mais doutores fumam Camel. Estamos repetindo a história do tabaco.
Há algum tipo de estatística de casos de doenças no país?
Salles - No Brasil não tem estatísticas. Havia antes. O INCA (Instituo Nacional do Câncer) tinha o que se chamava séries temporais, onde se classificava todos os tipos de doenças; entre outras, estava a mortalidade por tumores cerebrais. Por acaso começou a crescer o número, coincidindo com o uso mais intenso da telefonia celular. Era 1 por 100 mil; passou para 2 por 100 mil; 3 por 100 mil; até 4 por 100 mil. E aí não aparece mais no site do INCA a mortalidade por tumores cerebrais – desde 2008 não há mais registros precisos.
Por quê?
Salles - Eu mesmo perguntei e eles não sabem responder – lamentavelmente não têm mais estatísticas.
O senhor falou da visita de pesquisadores aqui...
Salles - Foi um encontro muito importante, que discutiu essas questões. Vieram pesquisadores do mundo inteiro – o que digo é que a comunidade cientifica tem dado os alertas.
Mas teve repercussão?
Salles - Um dos resultados do seminário, realizado em maio de 2009, foi o que se chamou de Resolução de Porto Alegre. Foi traduzida para nove línguas. É disponível na internet, só que pouca gente vê. Uma forma de achar é no site www.icems.eu – ali diz muitas das coisas que estamos discutindo agora.
E a mídia local, divulgou este encontro?
Salles - Houve divulgação pequena – em relação as propagandas que as empresas fazem, tu abres o jornal e dão o celular quase de graça. Não dá pra comparar. E de lá pra cá já se passaram três anos. Se antecipássemos essas medidas quanta gente poderia estar com a saúde preservada?
Há algum problema em relação à lei das antenas de Porto Alegre?
Salles - O problema na lei de Porto Alegre é que as operadoras querem detonar a lei. Na minha visão, por duas razões principais: primeiro, a lei não impede em nada que a comunicação seja melhorada. Nossa lei, ao contrário, é muito boa e deveria ser usada se possível em todas as cidades brasileiras. Ela não é perfeita, mas é a melhor do Brasil. O segundo ponto é que a lei de 2002 deu 36 meses para que as operadoras se adequassem e eles não se adequaram. A partir de 2005 começou a contar multa diária para os que não cumprissem a lei - hoje existe um passivo de multas que estão sendo discutidas na Justiça, ouvi falar na ordem de centenas de milhões. Assim, é muito mais fácil para eles influenciar a Câmara Municipal, eles têm meio para isso, e revogar a lei, do que pagar as multas.
Há um projeto na câmara para modificar a lei de 2002, os vereadores já anunciaram que discutirão o assunto neste semestre...
Salles - Foi colocado ano passado um projeto do vereador Airton Ferronato, foi um projeto discutido pelas operadoras e pela Fiergs, mas o projeto era um desastre a ponto do próprio MP dizer que no dia seguinte que fosse aprovado entraria com ação de inconstituonalidade. O que acontece realmente é que existe muita burocracia no licenciamento - mas isso a prefeitura já concordou em agilizar - não é o caso de detonar a lei, e sim de agilizar a burocracia.
Então, a crise atual, que começou aqui, não foi por causa da nossa legislação?
Salles - O problema é nacional. Em outros lugares que não existe a lei, qual é a desculpa pelo mau funcionamento? A desculpa é a incompetência deles, incompetência e falta de investimentos. Por que venderam muito mais do que poderiam vender.
São dois problemas, um é de zona de sombra, realmente - mas que pode ser resolvido sem modificar a lei da cidade. Usando minis ERBs, a tecnologia é disponível.
Outra questão é que eles têm, por exemplo, uma ERB com capacidade de sessenta canais e se há 80 querendo acessar, 20 não vão conseguir - vai dar sinal de ocupado ou mensagem de fora de área. Se tu tens uma ERB que comporta 60, e tem 80 querendo falar e porque foi vendido muito celular.
Outra questão é que falam dos 50 metros de clinicas, hospital, creches e escolas...
Salles - Também não é problema, você pode botar a ERB a 100 metros desses locais – se ela tem área de abrangência de pelo menos 330 metros você pode colocar a 200 metros que não haverá problema algum.
E a tecnologia 4G, é preciso mudar a lei por causa da 4G?
Salles - O sistema 4G pode ser implantado respeitando todas as questões que estão na lei de Porto Alegre. Não tem problema do 4G, não tem problema algum para a copa do mundo.
Professor, teria como fazer um manual, algo explicativo para as pessoas?
Salles - Claro, inclusive já foi feito e distribuído no Fórum Social Mundial pelo grupo do vereador Beto Moesch – eu mesmo tenho aqui muita coisa. Slides e panfletos, algo como Telefonia celular: o que devemos saber. Estamos constantemente entrando em contado com ONGs e com o poder publico para conseguir verbas e produzir alguns panfletos. Mas é sempre difícil.
As operadoras não iriam querer essa mudança?
Salles - Elas não podem matar a galinha dos ovos de ouro. Elas teriam que alterar o foco, investir em fibras óticas, cabos coaxais, telefonia fixa. Isso ai é o seguinte, quando há conflito entre a saúde e os ganhos da empresa o que deve ser prioritário? Aí é que entra o governo como regulador para dizer: nós vamos estimular a comunicação fixa, vamos reeducar a população, que usa a telefonia móvel de forma equivocada.
Mas há vitórias. Hoje os fabricantes de celular já alertam nos manuais que estes aparelhos não devem ser operados a menos de 2.5 cm de qualquer parte do corpo humano. Qualquer parte.
Por exemplo, os manuais do Iphone 4 diz: usar a 2 cm de distância. Do Blackberry: 2,54cm; Motorola, 2,54cm. E os outros já devem ter também.
Mas o usuário não lê manual, são aquelas letrinhas pequenas?
Salles - Pois é, teria quer ser mais chamativo, o governo que deveria obrigar. Mas a solução é sempre usar o fone de ouvido.
Deveria haver uma política de saúde pública?
Salles - Já houve na ANVISA um grupo de trabalho para estudar estas questões. Fazia-se um relatório que recomendava essas coisas que estou colocando aqui. Mais isso foi há uns seis anos e depois morreu, não se sabe por quê.
(Por Tiago Baltz e Elmar Bones, Jornal Já, 01/08/2012)