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trabalho escravo globalização indústria têxtil e confecção
2012-07-16 | Mariano

Grupo de oito pessoas, todas vindas da Bolívia, foi libertado de trabalho escravo em oficina de costura precária e improvisada que produzia peças de roupa para a marca Talita Kume, com sede no bairro do Bom Retiro, na capital paulista.

Um grupo de oito pessoas vindas da Bolívia, incluindo um adolescente de 17 anos, foi resgatado de condições análogas à escravidão pela fiscalização dedicada ao combate desse tipo de crime em áreas urbanas. A libertação ocorreu no último dia 19 de junho. Além dos indícios de tráfico de pessoas, as vítimas eram submetidas a jornadas exaustivas, à servidão por dívida, ao cerceamento de liberdade de ir e vir e a condições de trabalho degradantes. O grupo costurava para a marca coreana Talita Kume, cuja sede fica no bairro do Bom Retiro, na zona central da capital.

Em um sobrado na Zona Norte de São Paulo com os portões trancados (foto abaixo), viviam duas famílias e mais três jovens que costuravam peças femininas de roupa em situação de trabalho escravo contemporâneo. Impedidas de sair, as pessoas tinham suas vidas totalmente controladas pelo casal, também vindo da Bolívia, que gerenciava a escondida oficina.

Pedro** veio com a mulher e o irmão, de 17 anos de idade, de La Paz, na Bolívia, para trabalhar na unidade de produção precária e improvisada. Eles estão no Brasil desde novembro de 2011. A família demorou quatro meses para pagar as passagens, que custaram R$ 1,2 mil. Pedro recebe em média R$ 350 por mês – abaixo do salário mínimo (R$ 622). O casal tem duas filhas, uma delas com apenas dois anos de idade. As duas meninas circulavam por entre as máquinas de costura, expostas aos mesmos riscos que os pais.

Há cerca de cinco anos, a Confecções Talita Kume Ltda. contrata serviços dos donos da referida oficina de costura. As vítimas libertadas estavam de quatro a oito meses trabalhando no local. Quase todos tiveram os valores das passagens da Bolívia para o Brasil descontados dos salários, o que revela indícios de tráfico de pessoas e comprova a prática de servidão por dívida, uma vez que despesas de moradia, alimentação e limpeza também eram cobradas.

A operação completa se estendeu entre 12 de junho a 5 de julho e foi realizada no âmbito do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo – Cadeia Produtiva das Confecções. A fiscalização contou com a participação – além da própria Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP), que coordenou o processo – da Secretaria de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania (SEJUDC), Receita Federal, Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público do Trabalho (MPT), Polícia Federal (PF) e Ministério Público Estadual (MPE).

A ação foi acompanhada ainda pelos deputados federais Cláudio Puty (PT/PA), Walter Feldman (PSDB/SP) e Ivan Valente (PSol/SP), respectivamente presidente, relator e integrante da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Trabalho Escravo, instaurada na Parlamento nacional no final de março de 2012 com o propósito de investigar a ocorrência do crime de redução de condições análogas à de escravo (art. 149 do Código Penal) em todo o país.

R$1 por peça
O valor pago às costureiras e costureiros era de R$ 1 por peça. A Talita Kume, por sua vez, remunerava o dono da oficina, em média, R$ 3,80 por peça. O vestido que estava sendo costurado pelas vítimas de trabalho escravo no momento da fiscalização custa na loja, em média, R$ 49,90. De acordo com a fiscalização da SRTE/SP, braço do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a precarização da relação de trabalho se dá com o objetivo de aumentar os lucros da empresa, caracterizando o dumping social e a concorrência desleal.

A empresa estipulava o preço da peça, entregava os tecidos cortados e a peça piloto para ser copiada na oficina de costura. Além disso, determinava o prazo para que as encomendas fossem entregues. Impunha ainda multas aos donos de oficinas, seja por não costurar as etiquetas (R$ 0,10 por peça) ou por problemas na costura (20% no valor da peça).

João**, de 17 anos, veio ao Brasil com o irmão Pedro sabendo que iria para a oficina de onde foi libertado. “Já saí com trabalho certo, mas nunca tinha costurado na Bolívia”. Torcedor do Bolivar e do Corinthians, o jovem, que ainda não concluiu os estudos, pretende retornar a seu país no final do ano.

Condições de trabalho
O sobrado onde funcionava a oficina tinha poucos cômodos, alguns deles divididos de forma completamente improvisada. O quarto em que dormiam três trabalhadores era pequeno, com dois beliches que ocupavam todo o espaço do local. Não havia mesas para as refeições e os empregados comiam sentados na cama. O casal com duas filhas dormia em outro quarto, assim como o casal que administrava a precária oficina, que funcionada há anos.

A sala, espaço que abrigava as máquinas de costura e servia como núcleo de produção, também tinha estrutura notadamente precária, com as instalações elétricas expostas, o que aumentava o risco de incêndio. O local era fechado e não havia extintores. Todos utilizavem um único banheiro. Os trabalhadores se revezavam na limpeza da casa, sob pena de pagamento de pizzas e refrigerantes, caso as tarefas não fossem realizadas.

A jornada de trabalho se estendia das 7h às 22h e, eventualmente, até 1h da madrugada do dia seguinte. A extensão variava de acordo com a encomenda. A jornada exaustiva imposta às empregadas e empregados está diretamente relacionada ao baixo valor pago pela Talita Kume por cada peça costurada, na avaliação da SRTE/SP. Costureiras e costureiros passavam o tempo todo sentados em cadeiras inadequadas para o serviço.

A comida era preparada em uma pequena cozinha, no quintal da casa. Os alimentos eram armazenados de modo negligente. A fiscalização encontrou, inclusive, carne com prazo de validade vencido. O local de trabalho e os alojamentos, que funcionavam no mesmo sobrado da Zona Norte, foram interditados. Também foi interditado o depósito da Talita Kume, na sede da empresa no bairro do Bom Retiro. Até o momento, a empresa não comprovou a correção dos problemas e, portanto, os locais continuam interditados.

Cadeia produtiva

A investigação da cadeia produtiva da Talita Kume – realizada pela SRTE/SP e pela Receita Federal – chegou até a oficina na Zona Norte de São Paulo por conta das notas fiscais com encomendas de mais de duas mil peças utilizando o CPF da filha do dono da oficina. A Talita Kume contrata diretamente a oficina de costura precária e irregular. Não há, nesse caso, nenhum intermediário, como ocorreu em casos envolvendo grandes marcas de roupa.

A oficina onde foi realizado o resgate dos trabalhadores é apenas uma das que produzem diretamente para a marca Talita Kume. A fiscalização apontou a existência de outras 16 oficinas que costuram peças de vestuário comercializadas pela marca. Somente cinco delas possuem Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), e mesmo assim, não têm funcionários devidamente registrados em carteira, como exige a lei.

Apesar de ter em seu objeto social a “confecção de peças de vestuário”, a Confecções Talita Kume Ltda. não mantém atividade de costura dentro de suas instalações. Os auditores fiscais do trabalho verificaram no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do MTE, que apenas uma costureira consta como contratada pela empresa.

Providências, reações

Após a fiscalização, as empregadas e os empregados resgatados receberam as verbas rescisórias no valor de mais de R$ 40 mil. Eles estão recebendo auxílio da SEJUDC e da DPU para regularizar a documentação. A empresa Talita Kume ainda não comprovou às autoridades fiscais a correção emergencial das condições dos alojamentos e da oficina, que ofereciam risco à saúde e à vida de costureiras e costureiros.

Foram lavrados 42 autos de infração contra a Talita Kume, entre eles o de discriminação étnica de indígenas Quechua e Aymara, grupo ao qual pertencem as trabalhadoras e trabalhadores bolivianos, que recebem tratamento pior do que os empregados que trabalham na loja ou na sede da companhia.

André Lee, diretor administrativo da Associação Brasileira de Coreanos (ABC) – que é signatária do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo – Cadeia Produtiva das Confecções – relatou que a entidade orientou a comunidade coreana sobre trabalho escravo em 2009. “Não estamos sabendo de nenhum problema. Para nós, estava tudo certo”, disse. Recentemente outros flagrantes de trabalho escravo envolveram empresas coreanas, a WS Modas Ltda (Belart) e a Patrícia Su Hyun Ha Confecções Ltda. – intermediárias da grife Gregory. Nestes últimos casos, 23 pessoas foram libertadas de trabalho escravido em maio de 2012.


(Por Bianca Pyl, Repórter Brasil / EcoAgência, 15/07/2012)


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