Fiz, a seguir, um resumo da situação das ações populares propostas contra a venda da Companhia Vale do Rio Doce, efetuada em 1997. O levantamento se valeu (para usar o trocadilho) de informações do advogado Eloá dos Santos Cruz, que atua na maioria dessas ações, ainda pendentes de decisão quanto ao seu mérito.
A 5ª turma do Tribunal Regional Federal da 1ª região (tendo como relatora a desembargadora Federal Selene Maria de Almeida, mas com voto decisivo do então juiz convocado Valisney de Souza Oliveira, até hoje não promovido ao desembargado) decidiu reformar as dezenas de sentenças provenientes da seção judiciária do Pará (1).
Os vencidos interpuseram embargos de declaração (inclusive Eloá Cruz, para definir a data do leilão (2)). Propuseram em seguida recursos especiais e extraordinários, cujo seguimento depende do chamado “juízo de admissibilidade” do presidente ou vice-presidente do tribunal de origem, para que possam ser remetidos ao Superior Tribunal de Justiça e/ou ao Supremo Tribunal Federal.
No caso, o seguimento de todos os recursos extremos foi indeferido, o que levou os vencidos (Vale, União, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Bradesco e outros) a ameaçarem prolongar o litígio. Para isso recorreram a agravos de instrumento endereçados ao STJ e STF, apresentados separadamente, mas que, em conjunto, representaram quase 140 processos, cada um com vários volumes a serem examinados pelos relatores. Trabalho para muito tempo.
Paralelamente em 18 de agosto de 2006, a Vale, sozinha, ajuizou reclamação perante o STJ, sob o fundamento de que, ao decidir como fez, a 5ª turma do TRF-1ª região teria descumprido a determinação para a realização de julgamento uniforme (3).
A reclamação recebeu decisão liminar do ministro Luiz Fux, então componente do STJ, favorável ao sobrestamento (suspensão) de todas as ações populares. Durante o vácuo de tramitação subsequente (de setembro de 2006 a maio de 2009), os acionistas controladores e administradores da Vale (ex-CVRD) resolveram arbitrariamente a compra da mineradora canadense Inco por 18 bilhões de dólares, sem prévio comunicado a qualquer órgão do poder judiciário (4) (sequer ao ministro que os beneficiou), como se o contencioso popular contra a desestatização não existisse.
A reclamação foi julgada procedente apenas parcialmente, porém manteve o entendimento de que prosseguisse a maior parte das ações populares em que a 5ª turma do TRF-1ª região determinara a volta dos processos ao juízo de origem. Nessa instância é que deve ser proferida sentença de mérito, antecedida de avaliação técnica multidisciplinar (contábil, econômica, geológica etc.), de modo a se determinar o valor real do acervo da CVRD.
Desesperados com essa possibilidade, contrária a seus interesses, os atuais controladores da Vale interpuseram recurso extraordinário no STJ, cujo seguimento foi negado. Apresentaram em seguida um agravo de instrumento, recebido pelo ministro sorteado Gilmar Ferreira Mendes, que ordenou a subida do recurso extremo “para melhor exame”.
No STF esse apelo foi secundado por uma ação cautelar, em que o mesmo ministro é relator e prolator de decisão liminar em 15 de setembro de 2010, revigorando a decisão anterior já superada do ministro Luiz Fux no STJ e, com isso, trancando mais uma vez o andamento das ações populares.
Convencido de que o ministro Gilmar Mendes não tem empenho nem interesse em permitir o devido processo legal das ações populares no caso da CVRD, Eloá Cruz encabeçou arguição de impedimento, objeto de despacho do atual presidente do STF (ministro Carlos Ayres Britto) no dia 31 de maio, determinando que os autos fossem encaminhados à Procuradoria-Geral da República.
Observa o advogado que “a novela da desestatização da CVRD ainda comporta muitos capítulos, mas tenho a impressão de que, no momento em que for decidida favoravelmente ao interesse público a medida cautelar em que se pede o depósito judicial das parcelas de lucros líquidos atualmente usurpados, os próprios manipuladores da CVRD se preocuparão em apressar o final da trama. Para o bem (espero eu) ou para o mal.
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(1) No conflito de competência instaurado a requerimento da União e do BNDES, havia sido definido como único juízo competente o da 4ª vara, mas houve uma reformulação administrativa e os processos passaram a ser decididos pela 1ª vara. Em medida ajuizada por Eloá, em que foi relator no STJ o ministro João Otávio de Noronha, ficou decidido que, desde que realizados os julgamentos das ações populares no âmbito da seção judiciária do Pará, o espírito da decisão no CC 19.686 estaria sendo respeitado. O inverossímil, segundo Elo[a, é que o juiz da 1ª vara no Pará adotou como “paradigma” uma sentença prolatada pelo então juiz e hoje desembargador federal Mark Ishida Brandão, em exercício na 15ª vara federal em Belo Horizonte (MG). Até por isso foram inválidas as sentenças prolatadas pelo juiz Francisco de Assis Garcês, na 1ª vara no Pará.
(2) Ao decidir os embargos de declaração da ação popular q99739000108178, a 5ª turma reconheceu que a data correta do leilão do controle acionário foi 06/05/1997 (terça-feira) e não 07/05/1997 (quarta-feira), “erro” proposital com que os arrematantes procuraram evitar a aplicação do artigo 11 da lei da ação popular e do artigo 182 do Código Civil Brasileiro, conjunção que levaria a retroagir suas responsabilidades ao momento anterior ao leilão. Em 07/05/1997 o Bradesco já se vangloriava de ter conseguido converter em ações debêntures que havia financiado, ciente antecipadamente de que o beneficiário não as resgataria.
(3) Esse argumento é considerado pelo advogado “uma falácia grosseira”. A isto, de julgamento uniforme de causas reunidas, se chama em direito processual de litispendência, mas a decisão do STJ no CC 19.686 foi a reunião das ações populares pelo fenômeno da conexão, que permite ao julgador proferir decisões diferenciadas sobre os mesmos fatos, levando em conta as peculiaridades de cada pedido. No exame e julgamento da Reclamação 2259, o ministro Teori Albino Zavaski inaugurou divergência ao estabelecer essa diferença primária (litispendência versus conexão), “que se aprende nas primeiras aulas de Direito Processual Civil em qualquer faculdade decente no Brasil”.
(4) Essa iniciativa da Vale”, adotada arbitrariamente e só depois de consumada submetida à assembleia de acionistas, configurou, no entendimento de Eloá, o que seria um atentando processual (CPC, artigo 879, inciso III), “prática condenável que nenhum julgador ou membro do Ministério Público levou em consideração, mas sujeitaria a empresa (ou quem fala por ela) à penalidade do silencio, ficando sem direito de se manifestar enquanto não purgado o atentado”
(Por Lúcio Flávio Pinto, Vale q Vale, 30/06/2012)