O desastre de Bhopal, em 1984, foi um dos piores acidentes industriais da história. Mas, quase três décadas depois, resíduos tóxicos ainda continuam armazenados no local em condições precárias. Agora, uma agência governamental alemã transportará para a Alemanha centenas de toneladas desses produtos prejudiciais à saúde a fim de destruí-los.
Tonéis metálicos oxidados contendo um pó escuro estão armazenados em um depósito no local em que ficava a antiga fábrica da Union Carbide em Bhopal, na Índia. Terra e areia vazam de sacos de plástico velhos empilhados em um canto do depósito.
Os tonéis contêm materiais tóxicos, mas eles não possuem tampas e não se encontram dentro nenhum outro tipo de caixa ou invólucro. Qualquer criança das favelas vizinhas poderia quebrar o precário cadeado colocado no portão de entrada. Isso é um exemplo típico de armazenamento de material tóxico no estilo indiano.
Mas agora especialistas alemães desejam limpar o local.
Na noite de 2 de dezembro de 1984, um dos maiores acidentes químicos já registrados na história ocorreu na cidade indiana de Bhopal. Uma fábrica da companhia de produtos químicos norte-americana Union Carbide, que atualmente pertence à Dow Chemical, produzia na fábrica de Bhopal um inseticida chamado Sevin.
A ideia era que a fábrica gerasse empregos e prosperidade para a capital de Madhya Pradesh, um Estado predominantemente agrícola localizado na região central da Índia, e cujo território é um pouco maior do que o da Itália.
No entanto, o que a fábrica acabou trazendo foram mortes para os moradores de Bhopal. Várias dezenas de toneladas de isocianato de metila, um produto químico extremamente tóxico, vazaram de um tanque naquela noite, produzindo uma nuvem de gás letal que se disseminou na cidade.
Os especialistas acreditam que o acidente tenha provocado até 30 mil mortes, embora o número exato de fatalidades, especialmente nas favelas adjacentes à fábrica, jamais tenha sido determinado.
Atualmente a população de Bhopal ainda convive com as consequências da nuvem de gás e ainda luta para obter indenização. Foi necessário um decreto do supremo tribunal da Índia para que o lixo tóxico pudesse finalmente ser removido. O parceiro encontrado pelos indianos para realizar a tarefa foi a Sociedade Alemã para Cooperação Internacional, uma agência governamental que fornece serviços voltados para a área de desenvolvimento sustentável.
Cerca de duas semanas atrás, quase 28 anos após o acidente, um grupo de ministros em Nova Déli decidiu autorizar que técnicos alemães ficassem encarregados da limpeza do lixo tóxico de Bhopal.
“Der Spiegel” obteve o texto da exposição de motivos que foi usada como base para que se chegasse a essa decisão. Ela explica detalhadamente como a International Services, uma subsidiária da Sociedade Alemã para Cooperação Internacional, transportará cerca de 350 toneladas de resíduos tóxicos para a Alemanha para que o material seja destruído.
Uma carta enviada em fevereiro pela Sociedade Alemã para Cooperação Internacional ao ministério responsável pela questão em Bhopal menciona a destruição do lixo tóxico “em um incinerador em Hamburgo”. Mas, segundo funcionários da sociedade, essa informação está incorreta, já que o contrato para a incineração será firmado com qualquer companhia europeia que vença a licitação que será aberta para isso, mas só após a assinatura do acordo entre a Alemanha e a Índia.
Fábrica fantasma
O local em que ficavam as antigas instalações da companhia em Bhopal, com os seus tanques oxidados e construções em ruínas, lembra uma fábrica fantasma. Uma placa na antiga sala de controle de operações diz: “A segurança é uma responsabilidade de todos”. Cães sem dono buscam locais sombreados entre as ruínas do prédio do laboratório.
Garrafas empoeiradas e frascos contendo substâncias como benzeno, hidróxido de potássio e diclorometano podem ser vistas sobre as bancadas do laboratório. Ninguém sabe dizer exatamente quais substâncias tóxicas foram enterradas no local após o desastre.
O Ministério Federal da Alemanha para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento, ao qual a Sociedade Alemã para Cooperação Internacional está subordinada, já aprovou o projeto. A Sociedade Alemã para Cooperação Internacional está com o modelo de contrato que foi enviado na semana passada ao governo indiano. A questão mais problemática é determinar quem assumirá os riscos e os custos relativos a possíveis acidentes de transporte ocorridos em solo alemão.
Segundo a proposta apresentada pela Sociedade Alemã para Cooperação Internacional, “o proprietário atual continua sendo responsável pelos resíduos até que estes sejam destruídos”. Também é exigido um seguro junto a um banco, para a eventualidade de haver algum problema durante o transporte até o incinerador.
A eliminação do lixo tóxico de Bhopal na Alemanha, a cerca de 6.500 quilômetros de distância, custará ao contribuinte indiano aproximadamente 3,4 milhões de euros (US$ 4,25 milhões). “Nós não poderíamos ter encontrado um melhor parceiro do que os alemães”, afirma o ministro estadual de Desenvolvimento Urbano, Babulal Gaur, 62, responsável pela assistência às vítimas do gás e ex-primeiro-ministro de Madhya Pradesh.
Gaur preferiria que a destruição do material ocorresse na Índia. “Eu segurei uma amostra dos resíduos com as minhas próprias mãos. O material perdeu a sua toxidade há muito tempo”, diz o ministro, minimizando o perigo representado pelo lixo tóxico. Mas todos os Estados indianos que eram candidatos para o reprocessamento do material acabaram recusando-se a receber o lixo tóxico.
"Resíduos problemáticos"
Segundo especialistas alemães em eliminação de resíduos tóxicos, o temor manifestado pelos Estados indianos é compreensível. De acordo com o relatório da Sociedade Alemã para Cooperação Internacional, o material – que supostamente consiste de solo contaminado com pesticidas que não tiveram nenhuma ligação direta com o acidente de 1984 – ainda contém “resíduos problemáticos” de cloro, mercúrio e metais pesados.
Os técnicos alemães acreditam que o projeto Bhopal poderá ser concluído em um ano. O lixo tóxico, que ainda se encontra na fábrica abandonada em toneis e outros recipientes abertos, será coletado por trabalhadores que usarão vestes de proteção e máscaras contra gases. A seguir, o material recolhido será colocado em contêineres lacrados e enviado de avião para a Alemanha, de preferência nos meses mais frios entre outubro e março.
“As 350 toneladas de material tóxico que nós pretendemos destruir são apenas a ponta do iceberg”, argumenta Hans-Hermann Dube, o diretor da representação da International Services no sul da Ásia, cuja sede fica na capital indiana. Dube observa que na verdade as instalações inteiras da antiga fábrica da Union Carbide se constituem em material tóxico que deveria ser removido. Os problemas referentes à contaminação de lençóis freáticos, algo que ainda afeta os moradores atuais de Bhopal, é outro problema específico.
“No longo prazo, a Índia precisará contar com as suas próprias instalações para a eliminação de produtos químicos e outros materiais tóxicos no próprio país e de uma forma ecologicamente correta”, diz Dube.
Faces distorcidas
A questão real é determinar por que demorou quase 28 anos para que a questão da eliminação dos resíduos tóxicos fosse encarada com seriedade na Índia. “Corrupção, ignorância, incompetência – os motivos são muitos”, afirma Rachna Dhingra, 35, que integra uma organização para a defesa dos direitos das vítimas de Bhopal. “Os políticos usam máscaras quando falam conosco”, diz o sobrevivente Abdul Jabbar Khan.
Este muçulmano de 57 anos de idade, que perdeu cerca de 60% da visão devido ao acidente de Bhopal, olha para uma caixa que contém os medicamentos que precisa tomar diariamente. No passado Khan organizou passeatas de protesto, e hoje em dia ele mostra-se indignado diante da indiferença manifestada pelas autoridades.
Grandes fotos em preto e branco, com imagens detalhadas das vítimas do desastre de 1984, estão dependuradas na parede ao lado da sua mesa de trabalho improvisada. Elas mostram corpos retorcidos pelos estertores da morte e as faces distorcidas das vítimas, com as bocas abertas, como se fossem peixes ofegantes.
Khan considera “pura propaganda” a notícia de que o restante do lixo tóxico será finalmente removido de Bhopal. Ele teme que isso seja apenas um complô com o objetivo de silenciar as vítimas de uma vez por todas. Mas Khan recusa-se a se deixar silenciar. “Eu não farei este favor a eles”, promete Khan.
(Por Simone Kaiser, Der Spiegel / UOL / EcoDebate, 28/06/2012)