O golpe no Paraguai é só uma amostra de como o mundo, querendo se consumir, tem o hábito de vender muito barato seus mais caros valores. Parece não ter nada a ver, mas foi no apagar das luzes da Rio+20 que o presidente eleito de um dos países mais indígenas da América Latina foi destituído em rito sumário, sem chance de defesa, na cara dura.
A Monsanto é apontada como uma das principais interessadas na ruptura institucional paraguaia. E há outras "coincidências" interessantíssimas com esse fato. Dias antes, o presidente do Equador, Rafael Correa, concedera uma entrevista, falando justamente do que já é conhecido nos meios acadêmicos como uma "guerra não convencional". A guerra da mídia.
Com um raciocínio simples, porém certeiro, Correa explica: "As grandes corporações de mídia agem como um verdadeiro partido político contra governos que não rezam pela cartilha dos interesses desses grupos". Vale lembrar que o grupo ABC Color é apontado como articulador e sustentador do golpe que tirou Fernando Lugo abruptamente do cargo. Com uma tática descrita pelo mandatário equatoriano como de "conspiração, desestabilização e desgaste".
De forma geral, há uma sintonia muito grande na forma como grandes grupos agem no mundo todo, como que seguindo a fio a cartilha preparada por Nicolló Machiavelli séculos atrás. E pouco importa se o assunto é política, economia ou meio ambiente. O comportamento é praticamente o mesmo, assim como os resultados.
Chovendo no molhado
A mídia é um ponto nevrálgico na mudança necessária. Se não o mais importante, certamente o mais urgente. Sem mudar a mídia como um todo, suas estruturas e compromissos poucos terão condições de acordar e agir para evitar qualquer catástrofe, crise ou golpe.
O artigo "Chovendo no molhado", de Hélio Schwartsman, publicado no início do ano na Folha de S. Paulo capta muito bem o espírito da questão. "Desprovidos das defesas instintivas, uma boa comunicação do risco, que mobilize emoções sem falsear os dados, é nossa melhor chance", sentencia ele.
Mas o que precisa mudar na mídia? Em princípio tudo, inclusive a cabeça dos profissionais. Contudo, mais urgente é o modelo de negócio, até porque uma coisa leva a outra. Ou seja, se um veículo é tocado como um negócio privado e lucrativo, nada mais natural que seus profissionais sigam a cartilha tácita de que o lucro do patrão vem primeiro. Equilibrar a ética do business com a da sociedade é uma frágil fantasia, posta de lado no primeiro sinal de ameaça aos tantos interesses e conexões que levam ao lucro.
Exemplos não faltam. Usemos os mais recentes por conveniência.
Mídia do luxo
A respeitada revista econômica The Economist publicou, durante a semana da Rio+20, um relatório sobre a mudança na paisagem do Ártico. Em 14 páginas, a publicação aborda as "ameaças e oportunidades" trazidas pelo já inegável derretimento do gelo no Pólo Norte. Admitindo que a mudança climática é o maior perigo para a região e o mundo, podendo ter "efeitos calamitosos" em todo o planeta, a revista destaca a "geoengenharia" como única e arriscada saída para a urgência do problema.
Por outro lado, não deixa de frisar que preferível seria a "abordagem mais segura" de colocar um preço nas emissões de gases. Aprimorar o mercado de carbono, para permitir que o lucro continue sendo o leme da economia e dos investimentos. Sobre a redução imediata do consumo e consequentemente das emissões, nada, nem uma palavra, nem explicação. Como se fosse algo absurdamente infactível.
Trata-se de uma abordagem coerente para uma publicação que tem entre seus anunciantes empresas consagradas no "business as usual" como HSBC, City Bank, Dassault, Caterpillar, Hyunday, Renault, Emirates Aluminium, além de fabricantes de relógios e artigos de luxo.
Assim, mesmo sem esconder informações, publicações como a The Economist manipulam a opinião pública de forma sutíl. Não apenas pela forma e a ordem da apresentação dos argumentos e das idéias, mas principalmente pela repetição incansável da sua forma de ver o mundo.
Distorção persistente
A mudança climática é um terreno fértil para quem quer analisar a manipulação midiática. Em seu primeiro artigo de 2012, George Monbiot desmascarou os principais tablóides ingleses, sempre produzindo catastróficas manchetes sobre a previsão do tempo. A estratégia, no caso de jornais como o The Sun, é ao final negar o consenso da mudança do clima.
O que Stephen Schneider (Science as a Contact Sport, 2009) chamou de "tática de distorção persistente" é apenas uma das muitas violações éticas cometidas.
Trata-se na verdade de uma incapacidade sistêmica. A mídia hoje vive basicamente de publicidade. Quem faz publicidade precisa vender algo, ou quer obter apoio político, expandir ou manter algum tipo de poder. Assim é inconcebível para os donos da mídia e seus padrinhos que a quantidade e a qualidade do consumo sejam um problema.
Em resumo, a estrutura política e econômica atual é inadequada e só funciona se for na base da exploração, da depredação. Sustentabilidade nesse sistema não passa de um conceito bonito e utópico.
Assim, pouco importa o impacto futuro. O que importa agora é o ganho econômico, que mesmo torto e desigual mantém todo o sistema. Os profissionais, por mais capazes que sejam, fazem o que podem para manterem o emprego. O risco climático que se dane. Ele só vai ser importante de fato quando virar problema, ainda que saia muito mais caro.
Ciência do drama humano
Nesse contexto, também não importa se a mídia é digital ou analógica. O problema é estrutural e não de contexto ou tecnologia.
Estamos passando por uma transição da mídia. Uma nova mídia baseada numa cultura narcisística, onde todos falam ao mesmo tempo. E poucos parecem saber que, enquanto você fala, não consegue escutar nada. É como se a tecnologia hoje fosse um resultado do nosso ego, servindo a ele com uma eficiência e amplidão nunca antes vistos.
Fala-se muito em conectividade, e com as ferramentas que hoje existem chegamos a pensar que estamos nos conectando mais. Mas a olhar pelo significado do verbo conectar, pode-se também concluir que a fantástica mídia digital até hoje só tem ajudado cada um a permanecer cada vez mais isolado em sua própria concha.
Cada um usa a mídia digital hoje para manter sua própria individualidade, se protegendo dos outros. Conexão, no sentido mais profundo da palavra, aquela que vem do coração, essa em realidade está cada vez mais truncada.
A Internet em si mesma é um meio sem coração. Ela apenas serve aos propósitos e intenções de quem a opera. Então, trata-se também das pessoas mudarem sua relação com a mídia que consomem. Abrir mão da alienação, em prol da conscientização. Tornar realidade a idéia de que vivemos todos no mesmo mundo. E tudo isso começa com a implementação de um sistema de mídia feito e comprometido com o coletivo, e não com os interesses de uma empresa, governo ou indivíduo.
Leia também:
- A Rio+20 e as preces do fim do mundo (coincidências)
- A Rio+20 e as preces do fim do mundo (engodos)
- A Rio+20 e as preces do fim do mundo (dissonâncias)
(Por Mariano Senna, Ambiente JÁ, 26/06/2012)