Depois de concluir que é preciso reinaugurar a relação entre a ciência e a sociedade para viabilizar as ações necessárias para a sustentabilidade global, a comunidade científica internacional se deu conta de que já foi dado o primeiro passo nessa direção.
A ciência para a sustentabilidade, um novo paradigma do conhecimento, já está sendo construída, segundo Lidia Brito, diretora da divisão de Políticas Científicas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Ex-ministra da Ciência de Moçambique, Brito participa no Rio de Janeiro do “Forum on Science, Technology and Innovation for Sustainable Development”, que ocorre até sexta-feira (15/06).
O evento de cinco dias tem o objetivo de debater uma nova agenda científica internacional para o período que se seguirá à Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (RIO+20) – que será realizada também na capital fluminense entre 13 e 22 de junho.
O fórum é organizado pelo Conselho Internacional para a Ciência (ICSU, na sigla em inglês), em parceria com Unesco, a Federação Mundial das Organizações de Engenharia (WFEO), o Conselho Internacional de Ciências Sociais (ISSC), o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC).
As discussões no fórum estão alinhadas com a Declaração sobre o Estado do Planeta, documento que sintetizou o resultado dos debates da reunião Planet Under Pressure, copresidida por Brito, em Londres (Inglaterra), onde mais de 3 mil cientistas envolvidos com diversos temas socioambientais discutiram qual seria a posição da comunidade científica internacional na RIO+20.
Uma das principais conclusões da declaração é que o sistema terrestre tem limites para sua exploração e os atuais níveis de pressão nesse sistema poderão levar a uma emergência humanitária de escala global, com a intensificação das crises sociais, econômicas e ambientais.
A superação desses problemas exigirá um novo pacto entre a ciência e a sociedade, com maior conectividade entre as lideranças de todos os setores, e, de acordo com Brito, essa mudança já está em andamento.
Em entrevista à Agência FAPESP, Brito falou sobre o novo paradigma para a sustentabilidade global, que requer um cientista cada vez mais multidisciplinar e mais participativo na sociedade. Explicou ainda por que rejeita a expressão “economia verde” e defendeu que o PIB é insuficiente para medir o sucesso do desenvolvimento de um país.
Agência Fapesp – A comunidade científica chega à RIO+20 com uma mensagem clara para a sociedade?
Lidia Brito – Há uma posição clara e algumas mensagens. Uma das grandes conclusões da comunidade científica do planeta é que entramos em uma nova era, o Antropoceno. Uma era em que o homem é a maior força a conduzir os destinos do planeta. Portanto, há uma nova responsabilidade do ponto de vista da humanidade em relação ao planeta. Outra conclusão é que o Antropoceno é uma era de interconexões, na qual tudo está interligado. Essa interconexão também ocorre em um ponto crítico, que são as fronteiras planetárias.
Nas mudanças que introduzimos no sistema planetário, estamos a atingir essas fronteiras interligadas. Não é só o aumento da temperatura isoladamente, nem a acidificação dos oceanos, nem a perda da biodiversidade de forma individual, mas é como tudo isso está ligado.
É correto dizer que essa mesma profusão de interconexões que gera os problemas globais também proporciona oportunidades para lidar com eles?
Brito – Sim. Essa interconexão profunda é um risco, porque o que quer que seja que façamos para empurrar uma dessas fronteiras, a fim de manter seu nível de estabilidade, irá criar instabilidade e incertezas em todas as outras fronteiras. Mas temos também que ver essa sociedade e esse sistema planetário interconectados como uma oportunidade inédita que nos é oferecida. Porque a mudança é mais rápida. Ideias e soluções que podem nos levar para uma zona de maior estabilidade são mais viáveis, porque tudo está ligado.
Isso, por outro lado, faz com que a ciência tenha que mudar. Esse é um grande desafio que temos pela frente.
O que o cientista precisa mudar em sua atitude e seu modo de trabalhar, tanto individualmente como coletivamente?
Brito – Individualmente, o cientista tem que entender que já não é suficiente trabalhar apenas na zona de conforto de sua disciplina, mas que é necessário se ligar com outras áreas de ciência, a outros sistemas de conhecimento, para que juntos novas soluções possam aparecer. São soluções às vezes até enraizadas em conhecimento já existente, mas só o fato de trazer outras disciplinas, outras formas de estar nas ciências, outras metodologias, outras perspectivas, dá um campo diferente para encontrar soluções.
É preciso refletir a interconectividade no interior da própria atividade científica?
Brito – Sim, exatamente, com multidisciplinaridade e até mesmo transdisciplinaridade. Usar inclusivamente metodologias de outras áreas de ciência para nosso próprio campo científico. Isso é um desafio importante para o cientista da atualidade: abrir-se a outras comunidades, a outros colegas e outras áreas de ciência.
Em nível global coletivo, da ciência como uma comunidade planetária, não só devemos trabalhar juntos nas diferentes perspectivas do conhecimento, mas principalmente engajarmo-nos em uma interação muito mais aberta com a sociedade e os tomadores de decisão – em nível do governo, do setor privado e da sociedade civil – para codesenhar e coproduzir essas soluções que são necessárias para uma sustentabilidade global.
O cientista precisa aumentar seu poder de influência para ser capaz de trazer subsídios científicos para os processos decisórios?
Brito – Claro. Para isso é preciso interagir de uma forma que essas outras comunidades não se sintam fora da decisão ou do desenho daquilo que é a questão científica. O cientista não deve ditar soluções unilateralmente com base em seu conhecimento, ou não atingirá a sociedade. Seu verdadeiro papel na atualidade é dizer quais são as questões que enfrentamos como humanidade e como nós todos – comunidade científica, gestores políticos, setor privado, sociedade civil – vamos encontrar juntos soluções com base científica para essas questões que afligem a todos nós.
Isso será um processo longo?
Brito – Acho que é uma questão que demanda urgência. Não podemos esperar muito tempo para fazer essa mudança. O que foi bom em todo esse processo é que já temos uma iniciativa, o Future of Earth, que procura, da parte da comunidade científica em nível global, trazer todas as ciências e os stakeholders – os intervenientes do processo de desenvolvimento sustentável – para a mesa, a fim de definir quais são as questões que temos que investigar e juntos vamos conseguir fazer isso. É um momento interessante, porque está a haver como que um rearranjo da governança científica e da forma como nós olhamos fazer ciência, que está claramente na mesa e está claramente a influir.
E penso que é emblemático que isto esteja a acontecer de novo no Rio de Janeiro. Porque em 1992 houve uma mudança drástica, que, acredito, ocorre mais uma vez em 2012. A comunidade científica está a trazer para a RIO+20 sua convicção em dizer: já percebemos o que é preciso mudar, vamos todos mudar juntos. É isso que trazemos para a mesa na Conferência.
Fala-se também de tecnologia nesse fórum. Muitas vezes há uma impressão distorcida do papel da tecnologia, como se ela tivesse a função de fornecer soluções para que se possa manter o chamado cenário business as usual, isto é, seguir no mesmo padrão de consumo, produção e pressão ambiental atual. Como contornar essa distorção?
Brito – Simplesmente não podemos manter esses padrões. Está fora de questão. A tecnologia tem um papel enorme nesse processo e desenvolvimento sustentável. Mas, por si própria, a tecnologia não dá conta. Ela tem que ser acompanhada por uma transformação social e uma consciência e um compromisso social de que temos que trazer a sustentabilidade global como algo que tem que fazer parte do nosso próprio tecido. Em cada dia, em cada ação que tomamos, a sustentabilidade global precisa estar presente.
O que faz diferença, talvez, é esse termo “global”. Nem norte nem sul, nem rico nem pobre. Todos nós. Tem que estar no tecido de nossas nações e do nosso comportamento individual e coletivo. Só assim poderemos aspirar a um mundo mais estável.
A consciência dessa centralidade do desenvolvimento sustentável está arraigada até que ponto na comunidade científica?
Brito – A Unesco, quando publicou o Relatório da Ciência em 2010, já tinha mostrado que havia uma mudança efetiva no cenário da comunidade cientifica. O que vemos, objetivamente, é muito mais colaboração internacional, muito mais ciência interdisciplinar. Acreditamos que já inclusivamente estamos em uma mudança de paradigmas. A ciência para a sustentabilidade global é o novo paradigma da ciência.
Então a ciência para a sustentabilidade global não é apenas uma aspiração dos pesquisadores, mas uma nova realidade que começa a tomar forma?
Brito – É algo que está a permear as várias escolas e vários níveis da produção de conhecimento e de ciência. Um exemplo disso é a iniciativa Future of Earth, que é um comprometimento da comunidade científica de que vamos trabalhar juntos nas varias áreas de saber. É também um compromisso daqueles que apoiam a pesquisa global: os financiadores da pesquisa estão conosco nesse comprometimento. Estamos prontos para fazer outro tipo de ciência que responde melhor aos desafios globais.
Agora, há muita coisa a fazer. E um dos grandes desafios é garantir que não haja exclusões nesses processos. Parte desse movimento consiste em criar capacidade científica em países que não a têm. E o Brasil é um país que claramente tem um papel enorme nisso.
Por quê?
Brito – Porque vocês conseguiram criar a vossa capacidade científica nas várias áreas do saber. O Brasil tem experiências nessa coprodução, nessa multidisciplinaridade na abordagem da ciência para o desenvolvimento sustentável. O Brasil pode ser um modelo para o estabelecimento de metas nesse contexto. É um país que mostrou muita capacidade de trazer juntas as redes do conhecimento. Em muitos aspectos vocês estão na dianteira, é simbólico que estejamos discutindo isso no Rio de Janeiro.
Vários pesquisadores brasileiros que temos entrevistado têm demonstrado certo ceticismo em relação à chamada “economia verde”. Qual resposta se pode dar a eles?
Brito – Para ser honesta, nós na Unesco não falamos em economia verde. Falamos de sociedade verde. Penso que o ceticismo dos investigadores vem daí: a discussão não é sobre economia. O que temos certeza é que, no Antropoceno, não é possível falar apenas de um dos blocos do desenvolvimento sustentável. A economia não pode ser discutida sem as questões sociais, culturais e ambientais. Elas estão interligadas e não podem ser tratadas de forma independente.
Fico satisfeita com os cientistas brasileiros, que não querem falar apenas em economia. Temos que falar em sociedade verde, para destacar essa força de mudança.
A senhora é a favor de abandonar o conceito de PIB e criar outras medidas de prosperidade?
Brito – Claramente não podemos ter só o PIB como medida de sucesso de uma sociedade. O PIB é muito restrito, não mede inclusão social, nem a harmonia entre homem e natureza, não mede o bem-estar das pessoas, nem a equidade. Temos que ter outras medidas. Por isso, nas conclusões do Planet under Pressure, dissemos: usem a comunidade cientifica para definir outras metas. Para desenvolver modelos de medida integrada da economia, sociedade e ambiente.
Sim, sou uma das defensoras de que precisa haver outras medidas de sucesso de um país que considerem o desenvolvimento sustentável em todos seus pilares.
(Por Fábio de Castro, Agência Fapesp, 13/06/2012)