Quando a mina de Carajás começou a produzir, em 1985, cada tonelada de minério valia 15 dólares. Até que a China entrasse vorazmente no mercado internacional, na passagem do milênio, modificando de forma tão drástica o perfil do setor, o preço do produto nunca fora além de US$ 25.
Hoje, o rico minério de Carajás embarca no porto da Ponta da Madeira, em São Luís do Maranhão, a US$ 50, mas chega à China a US$ 140. O frete marítimo, de US$ 90, é quase o dobro do valor de produção do minério e do frete terrestre, para transportá-lo pelos quase 900 quilômetros da ferrovia de Carajás.
Sem o “fator chinês”, cuja dimensão nenhum futurológo pôde prever, os quase 100 milhões de toneladas que a Companhia Vale do Rio Doce extraiu no ano passado da melhor mina de minério de ferro do planeta (de um total de 300 milhões de toneladas de sua produção) lhe renderiam, numa hipótese provável, 2 bilhões de dólares. Mas a empresa faturou em 2007, só em Carajás, como mineradora de ferro, US$ 5 bilhões brutos (sua receita global deve ter superado US$ 32 bilhões).
No entanto, quanto arrecadou de frete, através da sua empresa de navegação e com afretamento de terceiros? Certamente mais do que como mineradora. Os números exatos, porém, ninguém conhece. Essa é uma informação que a Vale não gosta de partilhar com a opinião pública.
Mais de 60% da produção de ferro de Carajás vão atualmente para a China. Incluindo o Japão, a Ásia é o destino de quase 80% dessa montanha de minério, transferida entre mares de um continente para outro. Nesse caso, o valor do frete asiático ultrapassa em muito os US$ 5 bilhões de receita bruta da Vale com a venda do minério de Carajás.
Parte considerável desse valor entra para os cofres da ex-estatal, através da sua própria empresa de navegação, que trocou de razão social provavelmente para permanecer à sombra da holding. A outra parcela é paga a terceiros.
Admitindo-se, para efeito de raciocínio, que o frete médio para os 40 milhões de toneladas restantes da produção de Carajás, destinada principalmente à Europa, represente um terço do custo asiático, o transporte internacional de minério ainda movimentará mais US$ 1,5 bilhão. Conta final dos fretes de Carajás: uns US$ 8 bilhões.
Somadas as duas contas, só o minério de ferro de Carajás representou, em 2010, 13 bilhões de dólares. Quanto desse valor ficou para o Estado do Pará? Se forem incluídos na avaliação itens como a massa de salários, a compensação financeira, o royalty e compras locais, a percentagem pode ir a algo próximo de 10%, se tanto.
O índice podia crescer significativamente se a Vale pagasse ICMS, do qual foi poupada pela nefanda lei Kandir (por coincidência, entrou em vigor no ano da privatização da CVRD), que desonerou os exportadores de matérias primas e produtos semielaborados. E subiria muito mais se, no estabelecimento de algum equilíbrio entre a empresa e o Estado, fosse considerado como parâmetro o PIB do minério de ferro.
O que a Vale está deixando em território paraense é uma pequeníssima parte da riqueza que o Pará lhe possibilita alcançar. Ainda mais se considerados os outros bens minerais que a empresa já está explorando ou vai começar a explorar (e em escala aceleradamente intensificada) em Carajás: cobre, níquel, ouro e manganês.
Somados, em pouco tempo eles ultrapassarão o valor da conta do minério de ferro, se forem destinados a mercados de boa receptividade. Considerados ainda a bauxita, a alumina e o alumínio, o Pará é o reduto por excelência da diversificação que a Vale busca para sair da dependência do minério de ferro, ainda a sua principal mercadoria.
O futuro da Vale tem sua matriz no Pará, mais do que em qualquer outro Estado brasileiro e qualquer das regiões do mundo nas quais a empresa já se fixou. Em 2006 a Vale comprou a canadense Inco, dona da maior reserva de níquel e segunda maior produtora desse metal, por 18 bilhões de dólares (o maior negócio já feito por uma empresa da América do Sul). Logo em seguida chegou a iniciar um lance de valor mais de quatro vezes superior (entre US$ 80 bilhões e US$ 90 bilhões): a compra da anglo-suíça Xstrata, a sexta maior mineradora do mundo, com presença forte em cobre, níquel e carvão.
No momento da segunda tentativa de aquisição, a opinião pública esteve mais atenta do que durante a operação com a Inco. Mas não tão bem informada para avaliar adequadamente o significado desse negócio. Apesar das declarações tranqüilizadoras do então presidente da Vale, Roger Agnelli, sugerindo que sua empresa já tinha porte suficiente para encarar um desafio internacional de tal envergadura, devia-se recear pela evolução no grau de desnacionalização da antiga estatal.
A característica original dessa desnacionalização não é a perda do controle formal da empresa, já que, na pior das hipóteses, as ações ordinárias representarão mais da metade do capital total da monstruosa corporação que resultaria da simbiose entre a Vale e a Xstrata, com valor de mercado batendo próximo de US$ 200 bilhões. O controle nominal do capital continuaria com o fundo de previdência Previ (dos funcionários do Banco do Brasil), o Bradesco e o BNDES.
Alívio para os nacionalistas? Só para eles. Um olhar mais rigoroso sobre os papéis evidencia de imediato que a Mitsui, mesmo sendo uma compradora de minério da Vale, passou por sobre as normas da desestatização e hoje tem seu naco de ações ordinárias, que lhe conferem participação nas decisões da empresa.
O Bradesco, principal agente da modelagem da venda, em 1997, também transformou em pó as salvaguardas do edital de alienação e hoje é o segundo maior acionista. E o Bradesco, através de sua cria de maior sucesso, Roger Agnelli, fez da criatura sua imagem e semelhança.
Teve uma década ao seu dispor para realizar essa tarefa. A Vale se tornou uma típica paper company dos novos tempos, entidade de marca mais financeira do que econômica, apesar de seus volumosos ativos materiais.
O significado desse novo perfil (de velha conformatura, mas com ênfase original) pode ser aquilatado pelas aventuras do empresário Eike Batista, o alquimista do papel. Ele usa uma fórmula-padrão: junta informações privilegiadas, recruta gente estrategicamente situada, tirando-a de seus empregos com salários vantajosos e participação na receita, e investe como um bólide em setores de risco – mas de futuro – para aplicar golpes de audácia fantástica. Em um ano criou uma empresa de mineração e a vendeu à Anglo American por incríveis US$ 5 bilhões, 50% a mais do que o valor de compra (US$ 3,2 bilhões) do controle acionário da CVRD.
Se a MMX era pouco mais do que papel (sua única jazida real estava no Amapá), por que a Anglo se dispôs a gastar tanto? Provavelmente para conquistar posições no país (ainda) sede da Vale, justamente a empresa que a destronou do segundo lugar dentre as maiores mineradoras mundiais. Seu foco está na infraestrutura, que poderá montar com o controle de uma empresa de grande potencial, e na detenção de informações privilegiadas.
A Vale não apenas tem jazidas valiosas no Brasil: possui uma logística sem pararelo em qualquer outro país. Essa rede de transporte e de energia só pôde ser formada graças à sua condição de empresa estatal.
Quando foi privatizada, esse fator foi equivocamente considerado circunstancial e subavaliado, como todo processo de privatização, uma das chagas abertas no coração dos interesses nacionais pelo governo do príncipe Fernando Henrique Cardoso, nosso tardio déspota esclarecido.
A desnacionalização, camuflada, mas poderosa, vem a reboque dessa teia de engrenagens financeiras, tecida por personagens como Agnelli em gabinetes e bolsas espalhados pelo planeta, sem muita consideração por sedes territoriais e governos nacionais.
Quando comprou a Inco, por pressão do governo canadense, a Vale cedeu o poder decisório sobre o níquel, que agora está no Canadá. Apenas transitoriamente? É o que a Vale declara, mas por enquanto não pode oferecer como garantia mais do que palavras. De fato, Carajás passou a ser um elo da engrenagem do níquel comandada a partir do Canadá.
Os jogadores de Wall Street já tem dois terços das ações preferenciais, que representam 40% do capital global da Vale. Ao invés de pulverizar suas ações no Brasil, tornando-se uma empresa do tal capitalismo popular, a Vale será, cada vez mais, um braço das paper company e seus boys de ouro. O que elas querem? Dividendos e mais dividendos, negócios e mais negócios, preços sempre mais elevados, lucros e lucros.
Essa sofreguidão é tanta, ao sabor das selvagens regras do mercado financeiro, que cada notícia de compra de empresa pela Vale é seguida por uma queda das suas ações. É o reflexo da expectativa de redução do pagamento de dividendos, que todo investimento de expressão provoca a curto e médio prazo.
Perder posição na classificação de risco afeta a imagem da companhia em Nova York, a principal bolsa de comercialização de seus papéis, onde a Vale foi a empresa estrangeira mais negociada no ano passado.
Se montanhas de commodities continuarão a ser sugadas do Pará no rumo de uma China insaciável, deixando buracos no ponto de origem, isso é detalhe, ou circunstância. É nisso em que nos estamos a transformar – e a reduzir.
Não é um destino glorioso, nem justo. Mas o tempo passa e a possibilidade de reverter esse quadro se torna mais remota, inclusive porque os patamares elevados de preços não se manterão e a crise, mesmo com a poderosa demanda chinesa, está batendo à porta. Quando se for abri-la, ela revelará uma surpresa: o que podia ser uma fonte de riqueza será uma forma de pobreza.
(Por Lúcio Flávio Pinto, Vale q Vale, 30/05/2012)