Às portas da Rio+20, as empresas também esquentam seus motores deixando suas assessorias de comunicação malucas. É hora de mostrar que também estão juntas para garantir um mundo mais sustentável. Daí a dificuldade revelada por alguns colegas do jornalismo corporativo de fazerem um camelo passar pelo buraco da agulha.
Sou um dos raros seres humanos que lêem com cuidado todo e qualquer release que me enviem sobre novas políticas de sustentabilidade das empresas, sem contar os relatórios que tratam do seu comportamento socioeconômico e ambiental encomendados por elas mesmas. Não porque seja fã dessa literatura, mas faz parte do ofício.
Particularmente, preferia ler o Chico Bento. Que, além de tudo, posicionou-se contra o novo Código Florestal. Coisa que muita empresa grande do agronegócio – que conta com relatórios lindíssimos, salpicados com uma profusão de imagens de onças com próteses dentárias e papagaios-do-piercing-roxo – não fez porque torcia pela flexibilização das leis ambientais.
Para produzir o modelo de relatório mais difundido hoje (Global Reporting Initiative), são envolvidos atores interessados nos impactos da empresa para discutir o comportamento das companhias. A ideia é boa mas, no final, ou questões colocadas não entram exatamente como deveriam ou, pior, a empresa diz uma coisa no relatório e age de forma diferente no mundo real.
Um caso clássico: empresas prometem deixar de comprar de fornecedores com problemas sociais e ambientais. Prometem isso em seu relatório de sustentabilidade, consolidando uma política e comunicando-a ao público. Ganham com esse anúncio, abraçam ministros, tiram fotos com indígenas. Anos depois, quando um importante fornecedor é flagrado fazendo besteira, a empresa ignora o que escreveu e diz que vai trabalhar em parceria com o fornecedor para que, juntos, possam caminhar em direção a um mundo mais sustentável. E que não poderia deixar o fornecedor na mão sob o risco de empregos serem fechados.
Lembrando que o tráfico de drogas é também um grande empregador, mas defender serviço de aviãozinho ou fogueteiro pega mal, enquanto que sair ao lado de desmatador ou escravista ainda é justificável desde que seja pelo progresso da nação. Já vi coisas assim em grandes mineradoras, indústrias automobilísticas, enfim, não é monopólio de determinado setor.
E o que estava escrito no relatório e que foi comunicado à sociedade? É o que se perguntam alguns amigos que estão diretamente envolvidos com produção de relatórios de sustentabilidade. Dia desses, um deles me confidenciou que, seguindo essa toada do “esqueçam o que escrevi”, ia oferecer seus préstimos como revisor de romances de ficção em alguma grande editora.
Dramas pessoais e literários à parte, ainda considero salutar o processo de produção desses relatórios nas empresas que levam isso a sério e convidam os interessados no comportamento da empresa para debates. É o momento de pressionar e constranger. Cobrar o que não foi feito, reconhecendo avanços, é claro. E, como ninguém é de ferro, comer pão de queijo, sanduíche de metro e tomar suco de laranja em salas de conferência de hotéis chiques.
Além de rir um pouco. Participei de um rosário de encontros visando à produção desses relatórios como parte interessada por conta do meu trabalho. Houve cenas memoráveis. Numa delas, anos atrás, um banco convidou para analisar seu relatório. Alguém levantou a mão em determinado momento e perguntou se ainda dava tempo de a empresa repensar um trecho que pegaria bem mal quando fosse divulgado. Nele, havia uma forma um tanto quanto inusitada de avaliar o impacto do aquecimento global no país e nos negócios:
“Do ponto de vista dos impactos diretos das mudanças climáticas, o estudo [conduzido pelo banco, sobre negócios e mudanças climáticas] aponta um risco reduzido na estrutura da Rede de Agências e na composição do faturamento da Organização, dado o horizonte de tempo em que a alteração do clima do planeta deve começar a afetar o Brasil com mais intensidade. À exceção das regiões litorâneas, as mais ameaçadas pelo aumento do nível do mar, o restante do território brasileiro não deve ser diretamente atingido.
A queda de oportunidades de trabalho no campo, o empobrecimento de faixas importantes da população e o conseqüente fluxo migratório para as grandes cidades poderão acarretar aumento do desemprego, gerando impactos sociais negativos como o crescimento da violência e da favelização e o fortalecimento da economia informal.
Nesse cenário, poderia-se observar uma diminuição da fidelização dos clientes aos bancos, diante do acirramento da concorrência, cada vez mais concentrada em regiões metropolitanas. A importância de se trabalhar melhor a rentabilidade do cliente aumenta. Tais fenômenos implicam a necessidade de cadastro de clientes mais flexível e rapidamente atualizável, uma vez que uma movimentação mais intensa das pessoas amplia as oportunidades de negócio, tanto pelo volume de recursos quanto pelas oportunidades de financiamento.”
Cadastro de clientes mais flexível? Ou seja, quem disse que não dá para ganhar dinheiro com mudanças climáticas? É a economia verde, minha gente.
Isso sem contar o texto. Após anos lendo releases e relatórios, tenho a certeza de que alguma coisa está errada. Tudo bem que cada grupo tenha palavras próprias para se expressar. Mas se o objetivo é comunicar à sociedade e não apenas a um grupo restrito (ó, vó! ó que lindo, fui eu quem escrevi!), seria importante tocar os dois pés no chão e falar português claro. E não “sustentabilitês”. Até porque o uso exaustivo dessas expressões servem para encobrir a falta de conteúdo.
Vamos a uma breve experiência. Levantei com uma amiga jornalista que também trabalha na área dez termos usados com frequência nos relatórios.
Economia verde
Empoderamento
Globalizada
Operacionalização
Oportunizar
Panorama geral
Paradigma
Participativo
Sistêmico
Sustentabilidade
Disso, sem pensar, produzi um parágrafo:
“Devemos operacionalizar, de forma globalizada, o empoderamento sistêmico como um elo de ligação de uma sociedade participativa no panorama geral de um novo paradigma de uma economia verde, que visa a oportunizar a efetivação da sustentabilidade.”
Olha, não é por nada não, mas conseguiria encaixar esse texto em uma miríade de comunicações empresariais pré-Rio+20. É genérico, tipo uma pescada, uma virose, sempre presente no ambientalismo empresarial. Mas também em órgãos governamentais. Ou em organizações não-governamentais…
Enfim, sou o discurso que, cotidianamente, construo sobre mim mesmo. Ou seja, sou o que a sociedade vê em mim. E considerando que a percepção do que seja realidade é algo construído, quanto mais recursos financeiros tenho, melhor a bricolagem.
Sou uma cebola de camadas sobrepostas que parece densa e cheia de conteúdo.
Mas que, ao ser descascada, oferece apenas vento.
(Blog do Sakamoto, 10/06/2012)