A Vale proclama no seu portal (muito pobre, por sinal) que emprega 138 mil pessoas, “entre pessoal próprio e terceirizados”. Não identifica o montante de cada grupo. Talvez porque o processo de terceirização tem sido um dos pontos mais críticos e conflituosos da sua política.
A propaganda institucional da companhia garante que todo esse pessoal (um contingente que podia se aproximar de 500 mil pessoas, incluindo os dependentes) trabalha por prazer e aplicando o melhor de si às suas tarefas. No entanto, a Vale não aparece nos levantamentos das publicações especializadas como uma das empresas consideradas boas para trabalhar. Coligadas e associadas, de ontem e de hoje, são citadas. A empresa mater, porém, não.
Como associar a grandeza da Vale, “uma das 25 maiores empresas geradoras de valor sustentável no mundo”, a essa posição secundária na avaliação qualitativa dos seus empregados? Não há essa contradição, diria um porta-voz da antiga CVRD, se se dispusesse a prestar contas a um veículo da mídia alternativa (nem à grande imprensa esse tipo de esclarecimento é dado: o que a corporação faz é comprar espaço para sua versão e seduzir adesões).
Ademais, como aperece com frequência, de público os empregados da Vale sempre a elogiam, manifestam sua satisfação e quase fascínio por fazerem parte da sua estrutura. Esse idílio é real ou resulta da ação coercitiva e constritiva da empresa? Seu controle interno é mais forte do que antes? Ela não está mais autoritária do que nunca?
Quanto mais rica e internacionalizada se tornou, a Vale pareceu seguir um processo de diferenciação. Acatou as exigências que lhe foram feitas pelos governos dos países nos quais se instalou, inclusive sobre as condições de trabalho, sem estendê-las ao próprio Brasil. Na terra de origem, desrespeita os direitos do trabalhador, que paga a conta do crescimento.
Há uma história que ilustra essa situação. O maior avião cargueiro do mundo, o russo Ilyushin, pousou no aeroporto de Belém em 2007. Fretado pela Vale, transportou pneus para caminhões Haulpak, conhecidos como “fora-de-estrada”. Essas máquinas são usadas pela empresa em Carajás, que é a maior província mineral do mundo, no sul do Pará.
Com capacidade para 140 toneladas e com 13 metros de altura (equivalente a um prédio de quatro andares), o “fora-de-estrada” é o maior de todos os caminhões. Um deles, na madrugada do dia 28 de julho de 2007, passou sobre o corpo do auxiliar de serviços gerais Thiago Santos Cardozo, de 20 anos, morador de Marabá, que trabalhava na jazida N4 Norte.
Era entre três e quatro horas da madrugada, Thiago segurava um cabo elétrico, que transferia energia de um gerador para a área de operação de uma escavadeira, situada atrás do local onde o caminhão ia carregar minério. Thiago não tinha lanterna nem rádio de comunicação, e a visibilidade era deficiente por falta de iluminação adequada.
A operação foi considerada, pelos fiscais do Ministério Público do Trabalho, “prática bastante arriscada e insegura”. Eles estranharam, na perícia realizada logo em seguida, que essa fosse a única atividade “não exercida por trabalhador” contratado diretamente pela CVRD, “apesar da relação direta com o processo produtivo”. Essa atividade, de maior risco, foi transferida para o trabalhador terceirizado, muito jovem e provavelmente inexperiente. Além de nativo.
O motorista Divanyr Clayton Lima não percebeu a presença de Thiago no local, onde não devia estar, ao dar ré no caminhão, e o esmagou. Só soube do acidente quando o motorista de uma pick-up, que estava no pátio de manobras, o avisou por rádio. De sua posição, no alto da cabine da máquina, a visibilidade traseira do enorme caminhão é nenhuma. O operador manobra às cegas, sem contar sequer com câmeras ou iluminação própria do veículo. No registro policial, a morte foi classificada de “triste fatalidade”.
Foi o acidente de maior impacto em Carajás naquele ano. Mas não o único. Projetada para operar com até 25 milhões de toneladas anuais de minério de ferro, a mina de N4 atingiria 100 milhões de toneladas em 2008. Se necessário, podia ir a 130 milhões toneladas, quase metade da produção recorde que a CVRD planejou para todo país, de 300 milhões de toneladas, no final da primeira década do novo século.
Todos os dias cada trem, o maior trem de minérios do planeta, recebe 700 mil toneladas, que transporta por quase 900 quilômetros até o porto da Ponta da Madeira, na ilha de São Luís, no litoral do Maranhão. Daí, o mais puro minério de ferro do mercado segue para o mundo; 60% dele rumo à China e 20% para o Japão, os maiores compradores, a 20 mil quilômetros de distância.
Para que haja essa quantidade de minério em condições de embarque, máquinas e homens, em turnos sucessivos de trabalho, que se estendem sem intervalos pelo dia inteiro, movimentam um milhão de toneladas de terra e rocha todos os dias. A pressão gera tensão, que impõe sacrifícios aos trabalhadores e dá causa aos acidentes. Provavelmente eles são muito mais numerosos do que os registrados pela companhia e apontados pelo governo.
Em 2006, por exemplo, outro operário terceirizado foi soterrado por 4,6 mil toneladas de minério de ferro. Ele estava dentro de um automóvel pequeno, que dava manutenção a uma das máquinas gigantes utilizadas na mina, quando um talude desmoronou sobre o veículo.
Como o operador também era empregado terceirizado, provavelmente essa estatística – como a maioria das ocorrências – não apareceu nos registros da companhia, que propagandeia seus índices positivos de responsabilidade social. Não incluindo neles, é claro, os maus feitos dos seus empreiteiros. Muito menos os seus.
Das 23 mil pessoas que trabalham em Carajás em 2007, quando ocorreu o acidente fatal com Thiago, apenas 10% eram contratados diretamente pela CVRD. Mais de 20 mil trabalhadores foram recrutados por 175 empreiteiros, que terceirizaram a maior parte dos serviços, sobretudo os mais pesados e menos qualificados.
Há turnos de seis, oito e 12 horas. Os intervalos para descanso e convivência familiar ficam ainda mais reduzidos porque os empregados perdem de duas a quatro horas indo ou voltando para suas casas. A distância, no caso dos que moram fora do núcleo residencial de Carajás, passa de 30 quilômetros.
Para a Vale, o cenário é como se fosse de uma cidade comum. Por isso, se recusou, durante muitos anos, a pagar o trajeto como hora extra de trabalho, até ser obrigada a efetuar esse pagamento por decisão adotada em 2010, através de sentença do juiz do trabalho em Parauapebas, Jônatas Almeida. Mesmo assim, conseguiu modificar favoravelmente a decisão original no plenário do Tribunal Regional do Trabalho, em Belém. Saiu-se melhor do que seus empreiteiros.
Esse litígio se tornou o principal motivo de mais de 90% das 8 mil reclamações protocoladas até 2007 na 1ª vara da justiça trabalhista de Parauapebas, em apenas 18 meses. Por causa desse congestionamento, foi criada uma segunda vara trabalhista para o município.
A empresa se recusava a reconhecer a alegação dos reclamantes de que, a caminho do trabalho numa região pioneira, entre a portaria da mina e cada uma das frentes de lavra, eles deviam ser remunerados por estarem “in itinere”, a expressão técnica dada ao tempo de transporte para local de trabalho de difícil acesso, que não é servido por transporte público. Nesse caso, as horas de deslocamento devem ser computadas na jornada de trabalho.
Além de não partilhar esse entendimento, a CVRD dizia também que tal benefício não constava dos contratos assinados com os empregados. E não se impressionava com a contradita do Ministério Público do Trabalho. O MP dizia que essa hipótese se enquadrava na renúncia a direito previsto em lei, cujo cumprimento podia ser cobrado pela autoridade competente na defesa de um direito que o cidadão deixa de exercer. Havia muitas queixas também contra o excesso de trabalho nos turnos.
Todas as causas somadas, a empresa e suas terceirizadas teriam que pagar aproximadamente 70 milhões de reais. Esse valor equivalia então à receita de pouco mais de um dia de produção bruta em Carajás. Pagar em juízo, assim, se tornara um negócio mais rentável do que cumprir no ato as obrigações trabalhistas. E ainda possibilitava a legalização das infrações, pela via do acordo em juízo, apagando o passado.
O sistemático descumprimento de garantias legais e a recusa da Vale de conceder vantagens pagas no exterior aos trabalhadores brasileiros (além de não querer pagar o imposto de renda pelos lucros obtidos em outros países, o que engendrou uma bilionária questão com a Receita federal, ainda em andamento), contrastou, durante vários anos, com a postura que a empresa adotou em 2006, ao adquirir a Inco, empresa canadense que detém as maiores jazidas de níquel do mundo e é a segunda maior produtora.
O governo do Canadá impôs várias condições à CVRD para aprovar a transação, dentre as quais impedimento a demissões por cinco anos, manutenção salarial e transferência da sede das operações de níquel para aquele país.
Havia também brutal contraste com os lucros líquidos recordes que a empresa alcançou no período (11 bilhões de reais só no primeiro semestre de 2007, antes do acidente com Thiago, contra R$ 14 bilhões em 2006) e a milionária distribuição de dividendos aos seus acionistas, com uma taxa de retorno, de 40%, que nem os bancos igualavam.
Essa fantástica rentabilidade era decorrente da competência da empresa, dos preços elevados das commodities no mercado internacional e do surgimento de novos compradores, e, sobretudo, das taxas de crescimento da China. Mas também contribuiam decisivamente para esse desempenho a isenção de impostos, os créditos favorecidos, a colaboração financeira oficial e o baixo valor da remuneração do trabalho.
Os adonos da Vale a partir de 1997 foram favorecidos pela aquisição do controle acionário por preço vil. Além disso, a privatização foi precedida de uma dispensa em massa de funcionários, por conta da estatal, que não apropriou adequadamente esse ônus.
Foi igualmente ignorado o valor extra-patrimonial das informações estratégicas em poder da companhia, o sistema logístico, o controle de grande parte do subsolo do país (e, em particular, do Pará) e as condições monopolísticas ou oligopolísticas que detinha, toleradas em função da sua condição de empresa pública. A tolerância não foi alterada pela privatização. Mas devia ter sido.
Sem falar na coincidência da entrada em vigor da famigerada Lei Kandir (proposta pelo deputado paulista Antônio Kandir, que não prejudicou seu Estado, como fez com Pará, Minas Gerais e Espírito Santo), isentando a exportação de produtos primários e semi-elaborados exatamente em 1997, ano da desestatização.
Em uma década, só o que a Vale deixou de recolher de ICMS no Pará foi além de quatro bilhões de reais, ou quase duas vezes o valor do investimento na fábrica de alumínio da Albrás, em Barcarena, a 8º maior do mundo.
Alvo de 103 ações que há 15 anos questionam na justiça o leilão de venda e de manifestações de protesto dos movimentos sociais, no Brasil e em outras partes do mundo, a Vale reage à sua maneira: contratando empresas internacionais para avaliar a mudança do seu nome e da sua logomarca.
Por um lado, essa maquilagem tem sentido: afinal, a CVRD, comandada, sucessivamente, por Benjamin Steinbruch, Roger Agnelli e Murilo Ferreira, uma variação empresarial da visão de Luís XIV (depois de cada um deles, o dilúvio), aderiu irrestritamente à globalização.
A empresa parece disposta a aprofundar ao máximo sua internacionalização, mesmo que isso custe a perda da identidade de origem, que é pública e é brasileira. Contudo, essa mudança de aparência pode também equivaler ao gesto do marido traído, que joga fora o sofá onde flagrou a mulher infiel.
Com nome e marca novas, a partir de 2008, a Companhia Vale do Rio Doce continuará infiel ao significado que podia ter para as regiões que explora, ao invés de desenvolver. Infiel à própria propaganda e ao discurso de responsabilidade social, feito para inglês ouvir e chinês aplaudir.
(Por Lúcio Flávio Pinto, Vale q Vale, 01/06/2012)