O advogado Eloá dos Santos Cruz lidera, no Rio de Janeiro, o grupo mais atuante contra a desestatização da Vale, com mais 16 integrantes. O grupo propôs 15 ações populares contra 16 pessoas, empresas e governo, todos personagens principais na venda da Vale. A relação, que começa com a União Federal, é um rol de celebridades com atuação decisiva no período:
* Fernando Henrique Cardoso
* Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
* Luiz Carlos Mendonça de Barros
* José Pio Borges
* Thereza Cristina Nogueira de Aquino
* Paulo Libergotti
* Projeta Consultoria Financeira S/C Ltda.
* Merril Lynch Pierce Fenner & Smith Incorporated
* N M Rothschild & Sons Limited.
Inclui ainda:
* Banco Bradesco S. A.
* Kpmg Peat Marwick Consultores
* Banco Graphus S. A.
* Engevix Engenharia S/C Ltda.
* Companhia Vale Do Rio Doce (CVRD, rebatizada Como ― Vale S/A)
* Companhia Siderúrgica Nacional (CSN)
* Benjamin Steinbruch
* Mario Teixeira.
Isto, “sem prejuízo de quantos mais sejam identificados até a prolação da sentença de mérito, em primeiro grau de jurisdição, inclusive o atual ocupante do cargo de Presidente da República e seu sucessor”.
Como esse tipo de questionamento costuma demorar muito para entrar em julgamento (quando chega a ter o seu mérito julgado), dois dos autores das ações – Ana Berenice Ferreira Cornelio e Dinoran de Jesus Bittencourt – morreram no curso dos processos. Foram substituídos por Péricles Eloy dos Reis Ferreira e Eliane Quagliani de Araujo.
As primeiras ações foram propostas no Rio de Janeiro. A primeira distribuição foi em 25 de abril de 1997, antes mesmo do leilão. Só em outubro de 2005 o Tribunal Regional Federal da 1ª Região determinou o prosseguimento (não a reabertura) das ações populares, que estavam bloqueadas no Pará. A fim de que obedecessem ao devido processo legal e se alcance sentença de mérito.
Processos sem fim
Quando o mérito dessas ações ainda não tinha sido apreciado, depois de 13 anos de tramitação, em 2010 o ministro Gilmar Mendes deu uma ordem liminar de suspensão de todos os processos, ao receber uma ação cautelar proposta pela Vale. Além dos 69 processos tratados numa reclamação feita ao STJ em nome da Vale, existiam então pelo menos mais 40 outros processos que ainda estavam retidos no juízo de 1º grau, em Belém, onde foram declarados extintos sem obedecer à exigência legal do duplo grau de jurisdição obrigatório (para que haja recurso da primeira decisão na instância seguinte).
Eloá previa que, devido às diferentes fases em que se encontravam esses processos, a “honorável liminar” concedida por Gilmar Mendes iria causar “tumulto nas instâncias ordinárias inferiores, com imprevisível desdobramento até de chegarem aos colegiados mais altos”, inclusive o Supremo Tribunal Federal.
Isso porque havia feitos julgados em segundo grau pendentes de recursos extremos. Apesar do trânsito em julgado de outros feitos, “seus autores desistiram, por cooptação político-partidária ou de outra ordem, ou faleceram” (o mais notório foi Barbosa Lima Sobrinho, na época da ação presidente da Associação Brasileira de Imprensa, a ABI).
O advogado admitia que “a imprescindível citação pessoal de cada um desses autores populares, já sacrificados por uma ordem de suspensão anterior, que perdurou por quase 2 anos”, demandaria “um tempo maior absurdo, mas, em proporção inversa, essa demora fica bem à feição dos interesses daqueles que manipulam abusivamente” a vontade da Vale.
Erro proposital
As ações populares suspensas apontaram “grave erro material” na decisão de recebimento, da ação, que foi individual (“monocrática”, segundo o jargão jurídico). Ela começava declarando que o ministro do Tribunal Regional Federal determinara a reunião, por conexão, de todas as ações populares “que objetivassem a suspensão ou a anulação do leilão de desestatização do controle acionário da empresa Vale para julgamento pela 4ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Pará”, mas indicando como data do ato o dia 7 de maio de 1997.
A uma leitura desatenta, parecia tudo certo. Mas só parecia, observou Eloá. O texto correto (e adulterado na sua reconstituição pelos representantes da Vale na ação) indicava como 6 de maio de 1997 a data “do leilão de desestatização do controle acionário da empresa”. A Vale, ao adulterar a data para o dia seguinte, como se simplesmente estivesse reproduzido integralmente o texto original, “violara os princípios processuais da boa-fé, lealdade e veracidade”.
O aparente “equívoco” servia “ao propósito de proporcionar uma espécie de ‘salvaguarda’, com o aval inadvertido de um órgão do Supremo Tribunal Federal”. O erro não podia ser considerado casual: ele resultou de malícia mesmo.
Por duas vezes seguidas na mesma página de abertura, foi escrito que o leilão foi no dia 7, uma quarta-feira, o que era rigorosamente falso. O erro, proposital, visava induzir os julgadores no Supremo Tribunal Federal “a erro de fato, a fim de conseguir uma ‘salvaguarda’ injurídica antecipada, qual seja a de os réus escaparem aos efeitos de eventuais sentenças declaratórias da nulidade do leilão”.
Qualquer que viesse a ser o resultado do julgamento da ação cautelar dos autores populares e do seu recurso extraordinário, as iniciativas visando a nulidade do leilão de 1997 jamais atingiriam seu objetivo. Se vitoriosas, elas anulariam os atos praticados em 7 de maio, mas não os da véspera. O leilão, porém, foi realizado na terça-feira, 6 de maio. O ato não seria atingido pelo eventual atendimento do pedido.
Cartas marcadas
Um dos fatores que motivaram a iniciativa dos autores populares “foi o comportamento desabrido do principal dirigente do Gestor do Programa Nacional de Desestatização (PND), o BNDES”. O banco não dispensou “tratamento condizente ao público brasileiro em geral e até aos próprios licitantes, pois desconheceu os seis princípios sinérgicos exigidos no artigo 37 da Carta de 1988 para venda de bens públicos (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e licitação), sobretudo no que diz à diligente supervisão da avaliação do riquíssimo item do patrimônio nacional”.
Alegaram os autores que esses fatos nem precisariam ser provados, já que se tornaram públicos e notórios. Dentre eles:
* as declarações pela imprensa de tratamento diferenciado aos concorrentes da licitação;
* as audiências do presidente da república com representantes de grupos participantes da licitação;
* a divulgação do preço básico da venda (US$ 3 bilhões) no exterior (Johannesburgo, África do Sul) antes da data do leilão;
* a admissão no corpo de avaliadores de empresas interessadas na aquisição do acervo licitado (como o grupo financeiro Bradesco);
* a omissão e desrespeito das regras do Estatuto das Licitações.
Esse procedimento foi “de modo tão acintosamente exasperado” que o então titular da 17ª vara federal do Rio de Janeiro, Wanderley de Andrade Monteiro, atendeu ao pedido dos autores das 15 ações populares iniciais e deu ordem para divulgar em editais o inteiro teor dos seus requerimentos de protesto, notificação e interpelação, encabeçados pelo despacho do juízo, que incorporou os argumentos em favor da maior divulgação possível da medida:
“Há vigorosos indícios e fundado receio, segundo o alegado na inicial, de que os Requeridos [Vale e associados] frustrarão os efeitos da Ação Popular que virá a ser proposta, objetivando a declaração da nulidade dos atos narrados na petição inicial, alienando as ações ordinárias e preferenciais nominativas do capital social da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) pertencentes à União Federal. Intimem-se, pois, por edital”.
A publicação dos três editais “afastou a possibilidade de ser alegada inadvertência dos notificados e interpelados, tipificando como possuidores de má fé os adquirentes das ações de controle acionário postas à venda no espúrio leilão de 06/05/1997 e seus sucessores, que não podem se locupletar livremente com os frutos naturais, industriais e civis da sociedade CVRD (agora rebatizada Vale S/A) e das empresas componentes do sistema, frutos esses ainda pertencentes ao Erário”.
Na petição inicial foram transcritas as palavras de Francisco Fonseca, ex-superintendente da Docegeo (Rio Doce Geologia e Mineração S.A.), a empresa especializada em pesquisa geológica coligada no Sistema CVRD. Dois meses antes leilão ele previu:
“A lucratividade da Vale aumentará muito no futuro próximo, devido a dois fatores: liquidação da dívida de Carajás e abertura de grandes e lucrativas minas de ouro. Esse aumento de lucratividade, resultado de décadas de administração competente sob regime estatal será mentirosamente atribuído à privatização. Economistas bisonhos louvarão as virtudes da privatização e apresentarão a Vale como exemplo. A economia deixou de ser uma ciência séria e se transformou em uma numerologia enganadora, a serviço de interesses dominantes”.
Fonseca acertou na mosca. Mas não teve direito a qualquer prêmio. O único que lhe interessaria, a reversão da venda da Vale, estava fora do jogo.
(Por Lúcio Flávio Pinto, Vale q Vale, 28/05/2012)