O embaixador Jório Dauster deixou a presidência da Companhia Vale do Rio Doce em 2001, quatro anos depois da transferência do seu controle acionário para a iniciativa privada. Significava que a empresa estava privatizando o seu comando administrativo para se lançar à fúria desbragada da exportação. O embaixador era remanescente da época em que a estatal atuava combinando sua face de empresa particular com seu papel de agência de desenvolvimento. Recrutava executivos bifrontes, com um olho no cálculo econômico e outro na estratégia política. Buscava um equilíbrio que estava nas suas origens e servia de aval ao seu futuro.
Esse equilíbrio nem sempre foi conseguido. Às vezes a CVRD se tornava um instrumento do jogo político, com toda a sua cadeira de vícios. Um dos momentos mais expressivos dessa tendência foi durante a gestão de Fernando Roquete Reis. Tentar barrar essa infiltração e isolá-la em quistos de pouca expressão constituía um dos elementos da “cultura Vale”. Os privilégios que a companhia conferia aos seus empregados deviam ter como contrapartida um compromisso com o serviço público e com a causa pública.
A partir da substituição de Dauster por Roger Agnelli a Vale se consolidou como uma empresa de bolsa, obsecada pelo pagamento de dividendos e por retorno de curto prazo. Mas não deixou de ser também o que seus executivos de colarinhos brancos gostam de chamar de player: uma autêntica multinacional brasileira. Era respeitada e temida por sua competência no mercado, por sua autonomia, independentemente da retaguarda oficial, do jeitinho brasileiro.
A saída de Dauster foi uma perda para o sentido da história da CVRD, ou seu epílogo, sem choro nem vela – e sem qualquer fita amarela. A nova face, contudo, era a de um mestiço, um híbrido artificial.
Apesar da venda do controle acionário que a União detinha, os fundos de pensão, à frente o Previ, dos funcionários do Banco do Brasil, permaneciam sendo o maior sócio. Os próprios fundos ainda estavam trocando de couro, como uma serpente em busca de nova identidade (que exige enfrentar a realidade dos números).
A saída de Jório Dauster complementava o desligamento de Benjamin Steinbruch, o primeiro presidente da nova Vale, que, por sua vez, era o resultado da teia de ligações, umas claras e outras obscuras, na qual foi tecida a privatização da empresa federal e todo programa nacional de privatizações, justamente a partir da venda da Companhia Siderúrgica Nacional, hoje controlada por Steinbruch. O componente especulativo desse processo foi muito alto, do que dão idéia as retiradas de dividendos ao longo dos três primeiros anos de gestão privada (ou semiprivada).
O Bradesco, um dos responsáveis pela modelagem da venda da Vale, na condição de consultor contratado, se tornou o principal sócio privado, a despeito da proibição legal a essa mutação camaleônica. O “detalhe” foi rapidamente deixado de lado. Os jornalistas viraram logo essa página de suas agendas.
O tema parecia recente demais para os analistas acadêmicos, que preferiam dedicar sua competência a fenômenos mais distanciados no tempo, mais passíveis de enquadramento em suas “bases teóricas”.
A sorte de uma empresa cinqüentenária, com uma trajetória tão rica, permanecia sob o domínio da mesma elite de sempre. Cada vez menos interessada em prestar contas e com ojeriza pelos que acompanham de forma crítica as suas atividades. Justamente por isso, este blog é uma forma de resistência a essa nova cultura e um instrumento a serviço do interesse público. Os 15 anos da desestatização e os 70 anos de existência da CVRD não podem passar em brancas nuvens, como gostariam os donos da meterologia do poder no Brasil.
(Por Lúcio Flávio Pinto, Vale q Vale, 25/05/2012)