A transferência do controle acionário da Companhia Vale do Rio Doce para a iniciativa privada foi um dos principais capítulos do programa de desestatização da economia brasileira. A redução dos ativos do patrimônio público foi iniciada com a redemocratização do país, em 1985.
Era uma providência necessária para ajustar o Brasil à ordem econômica mundial. Um dos seus mandamentos sagrados era dar ao Estado um tamanho mínimo, apenas o suficiente para manter os serviços públicos. O resto seria tarefa do mercado, através dos seus mecanismos de autorregulação, eternos e fatais como as regras da natureza.
Os propósitos parecem ter se realizado da melhor maneira possível. Desde 2001 a Bolsa de Valores de Nova York, a maior do mundo, comemora o CVRDday (o “Dia da Vale”), saudado com euforia pelos investidores e pensionistas norte-americanos. O sino do pregão é sempre tocado pelo presidente da CVRD, que leva os seus convidados para a “Big Apple”. Na primeira comemoração houve até discurso do então conselheiro da Petrobrás explicando as vantagens do processo de “privatização” para adoção institucional no Brasil.
Não há dúvida que a mudança foi boa para eles e para mais alguns. E para o Brasil? Ou, mais especificamente, para o Pará, o segundo Estado na federação em que a Vale está mais presente, dos 12 em que atua?
É espantoso e assustador que os paraenses passem ao largo da data e do que ela representa. Embora a Vale privada tenha completado 15 anos no dia 6, o assunto não entrou na agenda da sociedade. A imprensa, acostumada a só participar de comemorações, patrocinadas pela própria empresa, não aproveitou a oportunidade para fornecer à opinião pública dados para uma avaliação do ato da venda e das suas consequências. O rumo do Pará depende umbilicalmente do presente e do futuro da Vale.
Datas como a destes 15 anos nada significam se não forem a oportunidade para examinar os acontecimentos de uma perspectiva histórica. A esta primeira data se segue outra, a de 1º de junho, quando a Vale completará 70 anos de existência. Com o auxílio do tempo, podemos ver o que antes não percebíamos e minimizar o que, na época considerado importante, se revelou, pelo desgaste da vida, irrelevante, poeira luminosa que fica para trás, desaparecendo. Ilusão ou fantasia. Miragem.
Não há dúvida que a Vale tem peso muito maior hoje do que tinha em 6 de maio de 1997. Sua estrutura continua a ser a de uma empresa do Estado. Os que a criaram, em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, a conceberam não só como uma mineradora. Queriam que fosse uma agência de desenvolvimento.
Devia desenvolver o vale onde atuava, o do rio Doce (que ainda era então quase um paraíso natural), entre Minas Gerais, onde estava a primeira mina que lavrou, e o Espírito Santo, local do porto por onde passou a exportar, alcançado pela ferrovia que construiu entre os dois pontos, a Vitória-Minas.
Sua estrutura de agência de desenvolvimento persiste. Não há outra forma de definir uma organização que dispõe de três grandes ferrovias, de dois portos privativos pelos quais transita o maior volume de bens exportados pelo Brasil (e dos maiores do mundo), de uma empresa de cabotagem e outra de navegação, das maiores minas do país e do maior volume de concessões minerais em todo subsolo nacional.
Todo esse conjunto logístico, operacional e produtivo tem como meta prioritária a drenagem de recursos nacionais para o exterior. Não só para terceiros, mas para as empresas que a própria Vale comprou e opera nos cinco continentes. Tornou-se, de fato, a primeira multinacional (e a maior) brasileira.
Em 2006 realizou a maior operação de aquisição feita até hoje por uma empresa latino-americana, ao pagar 18 bilhões de dólares para a Inco, a multinacional canadense que é a segunda maior produtora de níquel do planeta e dona das maiores jazidas desse minério. Um negócio que só se tornou possível pelo fenomenal fluxo de caixa da companhia. Mas também pela elevação do seu endividamento a um patamar preocupante, que agora começa a se revelar ameaçador.
Além de haver se descentralizado do Brasil para o exterior (é do Canadá que comanda suas operações de níquel, que têm duas minas em Carajás, no Pará), a Vale se atrelou à China. Foi uma aposta bem sucedida numa visão meramente empresarial. Mas tem o mesmo acerto do ponto de vista de uma agência de desenvolvimento?
Com sua poderosa estrutura logística, a Vale atou de uma forma perigosa o Brasil à vontade dos chineses, sem um conhecimento satisfatório sobre o conteúdo dessa relação e seus mecanismos de regulação. Hoje, 60% do minério de ferro (o de melhor qualidade do mercado) de Carajás vão para a China. Com mais 20% para o Japão, 80% do filé mineral ficam na Ásia. É um processo de transferência de minério sem paralelo na história mundial.
Uma conjuntura excepcionalmente favorecida pelos preços elevados das commodities pode se alterar de súbito. Temos algum controle sobre o processo da formação dos preços? Quem estabelece a escala da produção, que está duplicando, para incríveis 230 milhões de toneladas, em 2015, a atual produção de Carajás?
Atraídos pelo canto da sereia dos preços altos, um dado conjuntural, estamos renunciando a uma ferramenta poderosa de futuro e, com ela, à possibilidade de agregar mais valor ao processo produtivo? É bom não esquecer que Carajás, começando a produzir em 1984, devia durar 400 anos. A previsão sobre a vida útil da jazida é atualmente inferior a 100 anos. Nessa escala, não vai apenas ser usada no processo produtivo dos compradores: vai lhes servir de estoque e reserva. Foi assim em relação ao primeiro minério de mercado internacional da Amazônia, o manganês do Amapá, meio século atrás. Não evoluímos na matéria?
Não há dúvida que a venda da Vale foi imposta goela adentro da sociedade pelo governo. E através de mecanismos de força, esse fato consumado vem sendo mantido. As sete dezenas de ações populares e outros mecanismos jurídicos que tramitam ainda hoje pelos tribunais permanecem sem deslinde.
Os prejuízos alegados e os direitos apresentados continuam fora do alcance dos cidadãos. Beneficiada pela estrutura estatal que herdou, a um preço vil (3,3 bilhões de dólares), a Vale privada não responde com o outro lado dessa herança, que são os benefícios sociais e a adequação aos interesses nacionais. A Vale é boa para si e os seus grandes clientes. Mas não – ao menos não na mesma medida – para o Brasil.
Esta é a conclusão de demorados estudos e aprofundadas análises empreendidas em cima de fatos concretas. Uma controvérsia fecunda tem que ser estabelecida sobre essa base factual, suscetível de ser demonstrada e positiva num debate aberto e franco, que elimina meros juízos de valor e sentenças dogmáticas preestabelecidas.
É isto o que a data devia proporcionar, a fim de que o povo brasileiro saiba o que tem em sua casa: um inimigo ou um aliado. O ruim, como lembrou o itabirano Carlos Drummond de Andrade num dos seus poemas, é quando o inimigo janta conosco. Com o agravante de que, fornecedores do jantar, ficamos apenas com o resto do banquete.
Por esses motivos, com todas as limitações de tempo, decidi preparar um dossiê, de 44 páginas, que foi hoje para as bancas de revistas e livrarias de Belém do Pará. Espero que o seu conteúdo seja capaz de mostrar ao leitor que esse item não pode deixar de fazer parte da sua agenda.
Atualizei a linguagem, mas mantive intacta a argumentação de alguns artigos já publicados para dar uma ideia da sequência dos fatos e da evolução da sua compreensão. Espero que tenha havido evolução mesmo. Mas não parece.
(Por Lúcio Flávio Pinto, Vale q Vale, 22/05/2012)