Pouco se fala dos fertilizantes nitrogenados, que ontem espantaram o fantasma malthusiano, mas hoje são responsáveis por zonas mortas equivalentes à superfície do Reino Unido.
É estranho que mereça tão pouco espaço na mídia uma das três principais ameaças à sustentabilidade global, em tudo semelhante à concentração de carbono na atmosfera: o imenso volume de nitrogênio que a fertilização química dos solos remete aos cursos d’água, e que acaba criando “zonas mortas” nos ambientes marítimos e oceânicos.
Contribuindo também para o aquecimento global e para a erosão da biodiversidade, essa gigantesca catarata de azoto completa o trio de problemas para os quais já há evidência científica de que fronteiras ecológicas já foram realmente ultrapassadas.
Qualquer pessoa com conhecimento histórico, mesmo que elementar, sabe da importância decisiva que teve para o extraordinário progresso material da humanidade dos últimos 150 anos o avanço tecnológico que viabilizou a utilização do trio fóssil de energias formado por carvão, petróleo e gás.
Em contraste, mesmo pessoas cultas e muito bem informadas sofrem de verdadeira amnésia sobre a mais decisiva das inovações tecnológicas que contrariaram a lúgubre previsão de Thomas Malthus (1766-1834) sobre a escassez relativa de alimentos como principal fator limitante da expansão demográfica.
O vaticínio malthusiano só começou a ser realmente desmentido no limiar da Primeira Guerra Mundial, quando a empresa alemã Badische Anilin & Soda Fabrik (mais conhecida como Basf) apostou na inteligência de um químico de conhecida família judia de Breslau, chamado Fritz Haber. Foi ele quem revolucionou o ciclo do nitrogênio com a invenção do processo de síntese artificial da amônia em 2 de julho de 1909. Tecnologia que em poucos anos ganhou escala industrial com o trabalho de Carl Bosch, competente executivo da Basf.
No final de 1913, a Alemanha já produzia mais de 10 toneladas de amônia por dia, rompendo com a dependência que toda a agricultura europeia ainda mantinha de fontes naturais de nitrogênio. Particularmente de preciosas importações de salitre do Chile e de guano do Peru.
Hoje, a produção mundial de fertilizantes químicos envolve mais de 100 milhões de toneladas anuais de nitrogênio, o que permitiu que a capacidade de suporte de 1 hectare de lavoura saltasse, em apenas 1 século, de praticamente 2 para 5 pessoas. No entanto, para triplicar a produção de grãos, o volume de fertilizantes nitrogenados foi multiplicado por 9, na direta contramão da ênfase no chamado “decoupling” que alicerça a retórica sobre a economia verde.
Mas o pior é que os excessos de fertilizantes nitrogenados rapidamente correm para cursos d’água, retirando seu oxigênio e gerando florescimento de algas. Esse processo de eutrofização afeta inúmeros rios e lagos, criando imensas “zonas mortas” em áreas litorâneas. Cerca de 400, segundo os últimos levantamentos, principalmente nas regiões costeiras mais densamente povoadas, de Xangai ao Delta do Mississippi. No verão, a zona morta do Golfo do México chega a uma média de 20 quilômetros quadrados. Fenômenos equivalentes ocorrem no Mar Báltico e na Europa do Norte.
No total, a área das zonas mortas é superior a 245 mil quilômetros quadrados, o equivalente à superfície de um país como o Reino Unido.
Será necessário reduzir em quase dois terços o fluxo global de nitrogênio, de 100 milhões para 35 milhões de toneladas anuais. Essa é a estimativa do grupo de 28 cientistas naturais que fez a lista das nove maiores ameaças ecológicas globais. A síntese do trabalho desse grupo, reunido sob os auspícios do Centro de Resiliência de Estocolmo (stockholmresilience.org), foi publicado na Nature, v. 461, de 24 de setembro de 2009.
Melhor do que muitas palavras é a ilustração com as nove fronteiras, na qual o excesso de nitrogênio aparece tão dramático quanto o aquecimento global e a perda da biodiversidade, formando o trio das fronteiras que já foram ultrapassadas pelo desenvolvimento humano.
(Por José Eli da Veiga*, Página 22, 10/05/2012)
*Professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ). zeeli.pro.br