Pesquisa protege contra eventuais doenças, mas pode munir bioterroristas. Publicação pela revista "Nature" vem após meses de debate
A revista científica “Nature” desta quarta-feira (2) traz uma pesquisa polêmica que gerou meses de debate científico após ter sido barrada por um painel de especialistas em biossegurança dos Estados Unidos. O estudo descreve uma mutação genética criada em laboratório que faz com que o vírus H5N1, que provoca a gripe aviária, se torne transmissível entre mamíferos.
Como a gripe aviária é altamente letal para os humanos, o resultado significa que uma epidemia do vírus entre pessoas é teoricamente possível, e poderia resultar em muitas mortes. A palavra chave aqui é "teoricamente". Não existem casos comprovados de transmissão entre humanos até hoje.
O objetivo da pesquisa era mostrar como essa mutação pode ocorrer na natureza, para que cientistas pudessem reconhecer e se preparar para uma possível epidemia.
A pesquisa chegou a ser “censurada” pelo risco de que fosse usada por bioterroristas na criação de um vírus que pudesse se espalhar entre humanos. No fim de novembro de 2011, Painel Consultivo sobre Biossegurança dos Estados Unidos (NSABB, na sigla em inglês), agência ligada ao governo do país, pediu que os detalhes do trabalho não fossem publicados.
Embora o pedido do NSABB não fosse uma ordem propriamente dita, as revistas científicas “Nature” e “Science” preferiram segui-lo. Uma longa discussão se seguiu até que a agência mudou de ideia e, no fim de março, recomendou que os estudos fossem publicados integralmente.
O estudo publicado pela “Nature” nesta quarta é liderado por Yoshihiro Kawaoka, da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos. Outra pesquisa, conduzida paralelamente pela equipe de Ron Fouchier, do Centro Médico Erasmus, da Holanda, tem resultados parecidos e também foi envolvida nos debates.
A ideia era que as duas fossem publicadas simultaneamente, mas só na última sexta (27) o governo holandês autorizou o envio do artigo para a revista “Science”. Ele está sendo revisado por outros cientistas e deverá ser divulgado em breve, segundo a assessoria de imprensa da publicação.
As mutações
Toda a questão do perigo e da capacidade de transmissão do vírus da gripe aviária passa por uma proteína chamada "hemaglutinina" – representada pela letra “H” em H5N1. É essa substância que se liga às células do hospedeiro para provocar a infecção – no caso, a gripe.
O sistema imunológico dos seres humanos não consegue combater os vírus que possuem o tipo “H5” desta substância – como é o caso do H5N1. Por isso, a gripe aviária é tão letal em humanos.
Porém, o vírus H5N1 não é transmissível em mamíferos, e todos os humanos que já morreram da doença a contraíram de aves. Isso acontece porque a proteína “H5” só se liga aos receptores celulares na presença de certos ácidos, que existem no pulmão de aves, mas não no de mamíferos.
Na pesquisa de Kawaoka, os cientistas conduziram alterações genéticas no vírus H1N1 e criaram uma versão do H5N1 que se adaptou ao pulmão dos furões – logo, se tornou transmissível pelo ar.
Este animal é o melhor modelo disponível para o estudo da transmissão da gripe em humanos, segundo Hui Ling-Yen e Joseph Sriyal Malik Peiris, da Universidade de Hong Kong, que comentaram os resultados em um artigo também publicado pela “Nature”.
A versão modificada do vírus causou nos furões efeitos como lesões nos pulmões e perda de peso, mas não levou à morte, como o vírus encontrado nas aves. Novas mutações, no entanto, poderiam levar a uma versão mamífera com a mesma letalidade do H5N1, acreditam os cientistas.
A mutação foi feita em laboratório, mas pode muito bem acontecer na natureza – em porcos, por exemplo – segundo os especialistas de Hong Kong. Portanto, a pesquisa representa mais que apenas uma ameaça no desenvolvimento de armas biológicas. Na verdade, a descoberta abre caminhos para avanços que podem gerar tratamentos contra os diferentes vírus da gripe.
“Compreender as mutações que conferem a transmissão entre mamíferos do vírus da gripe aviária vai permitir melhor avaliação de risco dos vírus animais que representem uma ameaça pandêmica e ajudar a selecionar os tipos de vírus contra os quais as vacinas pré-pandêmicas devem ser geradas”, escreveram Hui Ling-Yen e Joseph Sriyal Malik Peiris.
(Por Tadeu Meniconi, G1, 02/05/2012)