Pode-se começar pelo fim: quaisquer que sejam a data e o desfecho da votação no Congresso do projeto de Código Florestal, parece não haver razão para otimismo.
Por vários motivos – que, simplificadamente, levariam à conclusão de que o panorama atual na área da conservação da biodiversidade e dos ecossistemas, assim como dos recursos naturais em geral, tenderá a continuar o mesmo; porque, do governo federal aos estaduais e municipais, faltam estratégias que coloquem essa preocupação no centro de nossas políticas públicas e porque faltam recursos para orientar, fiscalizar, impedir iniciativas danosas, punir os faltosos. Sem falar na complacência com desmatadores, reiterada nas últimas semanas.
Também se pode começar pela saudade e pela constatação de quanto faz falta um cientista como o professor Aziz Ab’Saber, que pela vida afora se cansou de alertar para a inexistência no Brasil de um Código de Biodiversidades, que criasse regras diferenciadas para o “mosaico vegetacional de nosso território” – macrobiomas, minibiomas, ecossistemas, faixas litorâneas, extremamente diferenciados e pedindo regras específicas para cada um. Tais como “as duas principais faixas de florestas tropicais brasileiras, a zona amazônica e a zona das matas atlânticas; o domínio dos cerrados, cerradões e campestres; a complexa região semiárida dos sertões nordestinos; os planaltos de araucárias e as pradarias mistas do Rio Grande do Sul – além do nosso litoral e do Pantanal mato-grossense”.
Que sentido faz, por exemplo, estabelecer a mesma largura para faixas de proteção à beira-rio em volumosos caudais amazônicos e rios de outras regiões e dimensões?
Para esse ângulo das águas amazônicas têm chamado cada vez mais a atenção muitos cientistas de instituições da área, em alguns documentos já comentados neste espaço. E em outros, como os agora entregues ao ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, ressaltando o contrassenso de o governo federal criar Instituto Nacional de Águas em Foz de Iguaçu e Frutal e deixar de lado toda a Amazônia, que não tem instituição equivalente.
É o caso de papers assinados por professores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), do Instituto Nacional de Pesquisas em Áreas Úmidas (INCT-Inau da Universidade Federal de Mato Grosso) e do Museu da Amazônia e Laboratório de Potamologia do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas.
O primeiro desses documentos põe ênfase na multiplicidade de tipos de áreas úmidas “naturais ou artificiais, permanentemente ou periodicamente inundadas por água rasa, parada ou corrente, doce, salobra ou salgada, ou com solos permanentemente ou periodicamente encharcados, que apresentam uma vegetação adaptada a estas condições”.
Cerca de 20% da superfície do País pode ser considerada área úmida. Plantas que vivem em solos cobertos ou saturados com água têm, para se adaptarem à falta de oxigênio, características específicas no seu sistema radicular. Áreas costeiras com influência do mar – mangues, lagoas, pântanos – precisam ser diferenciadas de áreas úmidas interiores, sem influência marítima. E assim por diante, com veredas, buritizais, áreas alagáveis ao longo de grandes rios amazônicos, áreas do Cerrado e do Pantanal, etc.
Chega-se aí à questão dos serviços ambientais prestados por essas áreas, que vão da absorção do excesso de água durante as chuvas à regulação da descarga, à influência no microclima pela evapotranspiração (um exemplo é a “exportação” de chuva amazônica para o Cerrado, por esse caminho) e muito mais. Mas essas áreas úmidas não são consideradas ecossistemas específicos, nem mesmo na Constituição brasileira.
E o produto final de todas as omissões e faltas é a “destruição progressiva” de tais áreas; o “uso inadequado de terras, desmatamento de encostas, impermeabilização da superfície do solo, aumento dos volumes de chuvas e de erosão (que resulta em deslizamentos e formação de voçorocas, formação de enchentes, agravadas pela retificação e canalização de riachos e rios); aumento das queimadas (por falta de água infiltrada)”.
E as áreas úmidas serão cada vez mais importantes com estações mais chuvosas e secas mais intensas. “Nesse contexto”, dizem os cientistas, “a proposta do novo Código Florestal se mostra completamente anacrônica”.
Outro documento lembra que “não sabemos quanta água existe na Amazônia”, porque conhecemos as vazões, “mas falta o elo subterrâneo do ciclo hidrológico”. Segundo o IBGE, 45% da água subterrânea potável do País está na Região Amazônica; mas há formações geológicas que não são aquíferas.
Já a Agência Nacional de Águas mostra que 58% das cidades da Região Norte são abastecidas exclusivamente por água subterrânea e 7% têm sistemas mistos. No Tocantins e em Roraima, 60% da água de abastecimento é subterrânea; no Pará, 76%; no Amazonas, 71%. Todo o Polo Industrial de Manaus usa água subterrânea. E o desmatamento na Amazônia aumenta o escoamento superficial (com água de má qualidade) e reduz a carga dos aquíferos. Não há pesquisa sobre a interação da água subterrânea com os ecossistemas amazônicos. Menos de 10% da população da região dispõe de acesso a água tratada.
São exemplos do tratamento deficiente que vem sendo dado às questões, apenas com o Código Florestal. E mesmo que este seja aprovado em sua versão menos danosa, como se fará para que seja cumprido? Como já se escreveu neste espaço mais de uma vez, o Ministério do Meio Ambiente tem apenas pouco mais de 0,5% do Orçamento federal. Como fiscalizar? Como cobrar multas, mesmo quando aplicadas? Como se adequar às especificidades de cada área apontadas pelos cientistas?
É pena. Recursos naturais são hoje o fator escasso no mundo. E o Brasil poderia valer-se disso, pela situação excepcional que desfruta. Mas, ao que parece, continuaremos apenas pensando em lucros imediatos.
(Por Washington Novaes, O Estado de S. Paulo / EcoDebate, 23/04/2012)