Em audiência pública no Senado, nesta segunda (16), representantes do governo, do parlamento, dos movimentos sociais e de entidades de direitos humanos denunciaram a ofensiva das forças reacionárias contra os direitos territoriais assegurados pela Constituição de 1988. Entre eles, está o direito dos remanescentes quilombolas à terra, que será julgado pelo STF, nesta quarta, em função da ação de inconstitucionalidade movida pelo Democratas
Uma verdadeira ofensiva dos setores mais conservadores da sociedade coloca em risco os direitos territoriais previstos pela Constituição de 1988.
Foi o que deixou claro a audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, nesta segunda (16), para debater a Ação de Inconstitucionalidade (Adin) movida pelo Partido dos Democratas (DEM) contra o Decreto 4.883/2003, que prevê o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. A Adin está na pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) desta quarta (18).
De acordo com representantes do governo, do parlamento, dos movimentos sociais e de entidades de direitos humanos, a ação do DEM faz parte de uma estratégia maior que ameaça, também, as áreas de preservação permanente, via aprovação do Novo Código Florestal, e a demarcação das terras indígenas, que pode ser retirada da alçada do governo federal. O objetivo maior seria garantir que os recursos naturais presentes no subsolo dessas áreas possam ser explorados pela privada, à qualquer custo.
“Nós vivemos um momento de triunfalismo do agronegócio, em que se inicia uma discussão para flexibilizar direitos territoriais, algo que considerávamos pétreos”, denunciou o professor Alfredo Wagner Berno de Almeida, coordenador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e membro da Associação Nacional de Antropologia.
Segundo ele, nos nove anos em que vigora, o Decreto 4.887 demonstrou muita baixa efetividade para resolver o problema fundiário brasileiro, quase não alterando a correlação de forças existentes. “No último 1,5 ano, apenas uma comunidade quilombola, a do Brejo dos Crioulos, foi devidamente titularizada. Mas, mesmo assim, esse decreto incomoda os setores conservadores. Por quê?”, questionou.
Para ele, a resposta está justamente nesta estratégia conjunta de aumentar as terras destinadas à acumulação capitalista, mesmo desrespeitando os preceitos constitucionais.
Ele alertou também para a insistência dos setores conservadores em desvincular o direito de uso da terra do direito de exploração do subsolo, como fica claro nas discussões sobre o Novo Código de Mineração. “Na demarcação do Brejo dos Crioulos, o próprio governo federal já retira o direito dos quilombolas à exploração do subsolo. Isso é muito grave”, alertou.
Para o deputado Amaury Teixeira (PT-BA), os setores reacionários ficaram animados com as vitórias conquistadas no Novo Código Florestal e, por isso, estão se sentindo seguros para ameaçar outras conquistas sociais do povo brasileiro. “Há poucos dias, eles conseguiram aprovar, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, a Proposta de Emenda Constitucional 215, que retira do governo o poder de demarcação das terras indígenas”, exemplificou.
O deputado afirmou que o momento é muito delicado e exige a rearticulação dos setores progressistas da sociedade. “É preciso, mais do que nunca, ir para a ofensiva e mobilizar a opinião pública, para que não tenhamos retrocessos.
Se essa política conservadora avançar, poderá contaminar o Supremo em relação a outras decisões, como a relativa às cotas”, acrescentou.
Direitos quilombolas
Mais otimista, o presidente da Fundação Palmares, Eloi Ferreira de Araújo, defendeu que a ação do DEM já perdeu seu objeto, visto que o Estatuto da Igualdade Racial, sancionado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2010, reafirmou a legalidade da demarcação da titularização das terras quilombolas. “A principal alegação do DEM, na ação, é que o assunto não poderia ser legislado por Decreto”, explicou.
Ele combateu também, com veemência, outra alegação dos setores mais reacionários da sociedade: a de que, se reconhecidas, as terras quilombolas vão inviabilizar o progresso do país, porque abrangem um grande percentual do território brasileiro. O presidente confirma que, hoje, existem no Brasil 1.820 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação. Entretanto, garantiu que, somadas, as áreas destas comunidades não representam nem 1% das terras em posse apenas dos cinco maiores latifundiários do país. “Que terras imensas são essas?”, questionou.
A secretária de Políticas para as Comunidades Tradicionais da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Social. (Seppir), Silvany Euclênio Silva, reafirmou a intenção do governo federal em avançar na demarcação das terras quilombolas. Segundo ela, às vésperas da Rio+20, é imprescindível que este direito das comunidades tradicionais negras seja reafirmado pelo STF. “As comunidades quilombolas contribuem efetivamente para o desenvolvimento sustentável do país”, destacou.
A secretária ressaltou, também, que a titularização das comunidades quilombolas faz parte do compromisso do governo de acabar com a extrema pobreza no país, principal bandeira social assumida pelo mandato da presidenta Dilma Rousseff. Segundo ela, dos 16 milhões de brasileiros que ainda vivem na pobreza, a maioria é negra e vive no campo. O perfil exato da população das comunidades quilombolas.
O coordenador da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Ivo Fonseca, acrescentou que a legislação brasileira sempre tentou cercear o direito dos negros à cidadania mínima, que resistem historicamente.
“No processo de tentar avançar em nossos direitos, as leis sempre vem nos cercando. Há um sistema racista neste país que não quer que nós avancemos, que não quer que nós sejamos brasileiros de direito”, resumiu. Fonseca ressaltou que a terra é direito de todos os brasileiros e que as comunidades quilombolas ainda têm, em seu favor, a característica de não destruí-la. “Cerca de 95% das terras quilombolas estão preservadas”, garantiu.
Presidida pelo senador Paulo Paim (PT-RS), a audiência pública reuniu representantes de vários outros setores progressistas da sociedade. Entretanto, foi boicotada pelos parlamentares do DEM e dos seus aliados históricos. Nesta terça (17), o tema volta a discussão em audiência pública na Câmara.
(Por Najla Passos, Carta Maior, 16/04/2012)